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    Festival de Berlim 2017: Não Devore Meu Coração aborda a "crise de identidade" do Brasil atual, segundo o diretor Felipe Bragança

    Conversamos com o cineasta sobre o filme que evoca as consequências atuais da Guerra do Paraguai.

    Sonia Recchia / GettyImages

    Entre os doze filmes brasileiros exibidos no festival de Berlim este ano, um deles já tinha sido selecionado no festival de Sundance: Não Devore Meu Coração, do diretor Felipe Bragança (acima, à esquerda, ao lado dos produtores Marina Meliande e Raymond van der Kaaij).

    O filme se passa na fronteira brasileira, onde dois confrontos resgatam a rivalidade histórica desde a Guerra do Paraguai: a primeira ocorre entre o adolescente brasileiro Joca (Eduardo Macedo) e a garota paraguaia Basano (Adeli Gonzales), enquanto a segunda diz respeito ao irmão mais velho de Joca, Fernando (Cauã Reymond), um motoqueiro enfrentando gangues do outro lado da fronteira.

    Nós conversamos em exclusividade com o cineasta sobre este projeto:

    É interessante que o filme tenha sido selecionado na Mostra Geração, que tem como público-alvo os adolescentes.

    Felipe Bragança: É curioso. Nós tínhamos sido convidados para a competição em Sundance. Em seguida, recebemos um e-mail do Generation, dizendo que tinham gostado muito do filme e queriam passar aqui. Eu perguntei para eles: “Vocês viram realmente o último corte do filme?”. Fiquei pensando se eles tinham visto uma versão sem o sangue voando na parede... Mas a resposta foi: “Não, adoramos o filme. É exatamente uma das propostas este ano”.

    Parece que este ano uma das temáticas são jovens adolescentes que estejam lidando com problemas para os quais ainda não estão preparados. Eles disseram que tinha a ver com o momento que o mundo está vivendo. Problemas estão surgindo e a gente se sente despreparado para lidar com eles, sabe? Tudo o que está acontecendo: conflitos, Donald Trump… 

    Você descreveria Não Devore Meu Coração como um acerto de contas simbólico do nosso passado com o Paraguai?

    Felipe Bragança: Esta é uma ferida mal cicatrizada e eu queria abri-la de novo, sabe? O curativo foi mal feito, esse esquecimento está mal feito. Precisamos falar disso de novo. Decidimos colocar não só o lado histórico, mas o lado emocional. Eu queria incluir a formação desses meninos brasileiros da fronteira, de classe média e média-baixa. Eles tentam construir sua identidade, às vezes, se espelhando em um modelo de masculinidade, mesmo que sintam desconforto em relação àquilo, mas eles não têm outros modelos.

    Eu conversei com muitos adolescentes. Eu perguntava: “Como vocês se sentem sendo brasileiros, tratados às vezes pelos paraguaios como se fossem ricos e dominadores?”. Um menino que falou literalmente assim: “Eu gostava de uma paraguaia, mas a mãe dela não confiava em mim, achava que eu ia sequestrar ela”. A ferida não está estancada, então queria falar disso. Não sei se é um acerto de contas, é mais retomar uma questão que não está sendo discutida. É uma coisa que acontece hoje: as crises pelas quais nós passamos, brigas políticas, se devem muito ao fato de que a gente não se lembra de onde veio. Nós invadimos aquela região e toda a grande base da nossa economia hoje, que é o agronegócio, veio de uma guerra super violenta 100 anos atrás. Se não construirmos vítimas nem culpados, se não entendermos de onde é veio a nossa estrutura, não sabemos quem somos. 

    O festival de Berlim trouxe vários filmes brasileiros de cunho histórico, como Joaquim, Vazante, Não Devore Meu Coração... 

    Felipe Bragança: Tenho a sensação de que isso acontece por causa do momento do cinema autoral brasileiro um pouco mais livre, que surgiu no país de dez anos para cá. Isso tem a ver com várias políticas públicas, tem a ver com a formação do cineasta. A gente tava fazendo filmes sobre coisas mais próximas da gente, sabe? Sobre questões universais, mas que estivessem ligadas ao nosso cotidiano.

    Nos últimos quatro, cinco anos, começamos a viver uma crise de identidade muito forte no país. O nosso projeto de mudança social de esquerda estava em percurso e começou a mostrar várias limitações. Isso está levando o cineasta, e os artistas em geral, a tentar entender melhor para onde estamos indo, quem somos. Também penso que, como curadoria, a Berlinale esteja querendo entender que loucura de país é esse, que num momento é a quinta potência mundial e agora está numa crise super complicada. 

    A respeito de identidade, é interessante como os personagens transitam entre o português, o espanhol e o guarani, às vezes na mesma frase. 

    Felipe Bragança: Isso foi um processo. Nos dois contos do escritor Joca Terron, ele brinca com o dialeto local que mistura guarani, português e espanhol. Isso não é formalizado em lugar nenhum, mas as pessoas na fronteira misturam expressões, termos de guarani com português e espanhol. Escrevi o roteiro já assim e depois, nos ensaios, fui afinando na embocadura dos atores. Por eles serem de lá, eles faziam isso com mais naturalidade. Eles falavam: “Não, isso a gente não misturaria. Essa expressão sim”.

    Por exemplo, a Basano (Adeli Gonzales) fala um português meio “truncado”, mas ela também fala espanhol e a língua materna é o guarani. Os brasileiros do filme costumam falar português com traços de guarani e espanhol. Queria que isso fosse um dado central do filme, por isso trabalhamos principalmente com atores da região. É uma maneira de falar muito específica. O Cauã (Reymond) teve que trabalhar muito para chegar naquele registro.

    Ainda sobre identidades fluidas, todos os personagens são associados a codinomes e máscaras. O Clark Kent, a garota-crocodilo, o Dezembro… Ele são, na verdade, personagens de si mesmos.

    Felipe Bragança: O filme inteiro trabalha a ideia da projeção de uma identidade que se quer alcançar. Você tem ali o Clark Kent, que é o Fernando (Cauã Reymond), a figura masculina idealizada do herói. O Joca (Eduardo Macedo) tem uma brincadeira de ser o Bruce Wayne, que é uma figura mais silenciosa, misteriosa, que não tem pai. É um herói sem poderes, mas que fica tentando resolver tudo através da inteligência.

    Então os personagens são uma projeção do que gostariam de ser. A Gangue do Calendário é uma das expressões mais claras disso. Todos ali tentam projetar uma identidade heróica, talvez uma identidade feliz, uma identidade completa. A ideia é que o filme trabalhe isso e mostre a dificuldade de manter essa máscara, de manter essa idealização ao longo da história.

    O filme combina o realismo e a fantasia. Como equilibrar os dois?

    Felipe Bragança: O filme passa pelo olhar do Joca, que é o personagem puxando o filme. Eu queria que o realismo tivesse um filtro de desejo, de imaginação juvenil do Joca. É como se ele fosse o filtro na frente da câmera. Tentei trabalhar isso também com a fotografia, com a sensação de que tudo é real, mas está com o volume um pouco mais alto, sabe? Um pouco fora do chão. Os elementos poderiam ser reais, mas estão acima do tom do realismo. 

    É um realismo que só se coloca em cena através da imaginação do personagem. Eu diria que não é o que o Joca está no filme, o filme está no Joca. Brinco que o garoto é quem estava dirigindo o filme. Eu pensava: “Como ele imaginaria esse lugar? Como seria o tom?” Não é por acaso que, na primeira vez que você ouve falar da gangue no filme, quem pergunta é o Joca. O Fernando até contesta: “A gente não é uma gangue. Somos só um grupo de amigos.”

    Você pensa desde já em como encontrar o público adequado para esta história no circuito comercial brasileiro?

    Felipe Bragança: Na verdade, eu faço o filme que tenho vontade de fazer, mas acho que são duas camadas. Neste filme, quis contar uma história de tom mágico, que sai do registro do cinema mais cotidiano. Mas quando fiquei com vontade de fazer este projeto que lida com a história do Brasil, é óbvio que você pensa: “Talvez este projeto consiga chamar um público que não necessariamente gosta de assistir cinema poético experimental”. Ele tem um tipo de diálogo narrativo, que apesar de ser diferenciado, autoral, não é o do cotidiano. Talvez possa funcionar com outros tipos de público. Através dessa história, que a princípio parece mais popular, estamos convidando as pessoas a descobrirem outro tipo de registro. 

     

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