Depois de dirigir uma série de filmes premiados em parceria com Walter Salles (Terra Estrangeira, Linha de Passe), a cineasta Daniela Thomas apresenta no Festival de Berlim 2017 o seu primeiro filme solo: Vazante, história de uma fazenda de escravos decadente no Brasil de 1821, às vésperas da abolição.
A trama conecta a história de vários personagens, incluindo um escravo rebelde, a filha do proprietário das terras, que se apaixona por um garoto escravo e um tropeiro que passa a fazer parte da família. Nós conversamos com a diretora sobre este projeto:
Vazante não tem um protagonista definido, ele é um "filme coral". A estrutura sempre foi concebida desta maneira?
Quando eu li "Vidas Secas", que é uma grande referência, tive a sensação de que você pode fazer o filme, contar uma história, sobre aquele que está em evidência no momento e isso não tira a relevância de cada um que não está. Isso me fascinou. E eu me lembro que em "Vidas Secas", tem horas que o livro é contado pelo ponto de vista da Baleia, tem horas que é o pai, tem horas que é o filho, tem horas que é a mãe. E eu me senti tão enredada naquela história, naquela família, que eu ousei tomar esse partido em Vazante.
É curioso que o festival de Berlim 2017 tenha selecionado Vazante, Joaquim e No Intenso Agora, porque o cinema brasileiro faz poucos filmes históricos.
Eu acho que é uma questão de dinheiro. É por causa de verba, porque recriar uma situação histórica é algo muito caro e complexo em termos de produção. É interessante que os dois filmes respondam cada um à sua maneira ao desafio de fazer um filme histórico. Você tem que criar uma história que seja capaz de realizar depois. Isso faz parte também da criação de Vazante. Eu tentei imaginar uma história que eu pudesse fazer. Precisavam ser situações muito controladas, numa fazenda... Foi pensado em termos de viabilidade. Para quem faz cinema fora da indústria, é parte da criatividade, do processo criativo, pensar filmes do tamanho do nosso país, do tamanho da nossa possibilidade.
Vazante é muito diferente dos seus outros trabalhos em termos de estética e temática.
Nos outros filmes, especialmente com o Walter [Salles], eu fiquei pouco ativa na decupagem e muito ativa na dramaturgia, na direção de atores. O que eu queria com essa experiência solo era este prazer. O Walter ama decupar e aqui eu pude fazer isto, os planos vinham na minha cabeça, eu podia controlar como iria montar cada cena. Acredito que esta seja a grande linguagem do cinema: a decupagem. É aí que você constrói o seu filme.
Como foi feita a escolha do elenco? Os atores parecem ter sido selecionados pela expressividade do olhar.
Eu acredito que cinema é olhar. Acredito mesmo, e fui atrás disso. Por exemplo, eu queria que os negros que estão na fazenda nunca tivessem ido à cidade grande. Tem um menino lá que é filho de líder quilombola, mas ele estudou na faculdade. Quando você coloca o pai e o filho lado a lado, não dá para filmar o filho: ele tem uma maneira específica de olhar, uma ironia, uma sagacidade. A gente buscou pessoas que, só de olharem para a gente, já sabíamos que pertenciam ao filme. Os atores também.
Quais são as estratégias para levar um filme histórico, em preto e branco, ao público no circuito comercial brasileiro?
Estou aqui [no festival de Berlim] para isso. A gente tem que conseguir essas chancelas para ver se as pessoas se movem. E o Vazante tem um problema: ele tem que ser visto na tela grande. Ele é um filme para ser gozado assim como 2001 - Uma Odisseia no Espaço. 2001 não é um filme para ver em DVD. Então vai ser uma missão difícil. Agora eu acho também que, por outro lado, se você assiste aos primeiros quinze minutos, o filme tem certas artimanhas de dramaturgia para te deixar ansioso pelo que vem a acontecer logo depois. Então, apesar de você estar em um tempo lento, em uma época distante, preto e branco, eu acho – espero – que você vai ficar capturado pelas expectativas que o filme cria.
Qual é a relevância de trazer Vazante aos cinemas brasileiros no contexto político atual?
É uma ironia, porque 2009 foi o ano que eu comecei a fazer o filme, e naquela época a quantidade de ações sociais começava a aumentar, com cotas, ação afirmativa, políticas de inclusão, políticas de discussão sobre gênero, homossexualidade, racismo. A gente estava feliz, confiante que o Brasil ia dar certo... Então vem esse retrocesso, essa freada, essa marcha à ré que a gente está vivendo. Por ironia, o filme chega em uma hora maravilhosa porque ele fala assim: “Gente, é disso que precisamos escapar. Não podemos esmorecer. Bola para frente. Negros não são menos que brancos. Mulheres não são menos que homens. Vamos trabalhar. A gente tem que se livrar desse carma, dessa herança maldita”.
Você teme que o cinema brasileiro seja afetado pelas novas regras?
Estou morrendo de medo que este seja o “canto do cisne” do cinema brasileiro. Nós estamos em pânico, os cineastas todos. Comemorando e não podendo comemorar, sabendo que a qualquer momento a gente pode perder todas as formas de financiamentos, das políticas de inclusão, de distribuição... Em pânico. Pânico geral.
[Daniela Thomas foi uma das signatárias do manifesto da classe cinematográfica brasileira contra as políticas do governo Temer em relação à cultura].