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    "Algumas cenas eram ensaiadas e outras provocadas", diz diretora de filme premiado em Tiradentes (Entrevista)

    Juliana Antunes falou ao AdoroCinema sobre o potente longa-metragem Baronesa, vencedor da Mostra Aurora, principal mostra competitiva da 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes.

    Na sessão de Baronesa no Cine-Tenda durante a 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes, houve uma cena que mexeu com os nervos dos espectadores que acompanhavam a première mundial do longa-metragem que viria a se sagrar vencedor da Mostra Aurora em 2017, principal mostra competitiva do festival mineiro. Em determinado momento do filme, o espectador acompanha as conversas das protagonistas até que o som de tiros irrompe dos alto-falantes, a câmera treme e evidenciam-se os riscos que atrizes e equipe corriam naquele momento.

    Ao longo dos 75 minutos de Baronesa essa sensação de desorientação entre o que é "real" e o que é encenado é constante, mas os méritos do filme vão além dessa questão específica relacionada ao hibridismo do projeto.

    Com direção de Juliana Antunes, em sua estreia no comando de um longa-metragem, o filme acompanha a vida de Andreia (Andreia Pereira de Sousa), uma mulher que se divide entre a atividade de manicure e o eventual tráfico de drogas, e Leid (Leidiane Ferreira), mãe de quatro crianças que lida com a ausência do marido detento. Obstinada, Andreia quer deixar o perigoso bairro onde vive para fugir da guerra entre traficantes que tanto lhe aflige e planeja construir sozinha uma nova casa num lugar melhor.

    Em entrevista para o AdoroCinema, Antunes fala sobre as origens do projeto, o desenvolvimento de Baronesa em conjunto com Andreia e Leidiane e as controvérsias que ele suscitou na Mostra de Tiradentes.

    Estamos em um momento em que a pauta da representação feminina no cinema e demais espaços da sociedade urge e ganha cada vez mais força. Baronesa é um filme sobre mulheres, feito por mulheres e que foi premiado num festival que, em 10 anos de Mostra Aurora, premiou uma diretora mulher em apenas duas ocasiões. Aliás, a Mostra Aurora deste ano contou apenas com dois filmes dirigidos por mulheres. Diante desse cenário, como você avalia a importância da vitória de Baronesa em Tiradentes?

    É mais do que necessário Tiradentes acordar para isso. Infelizmente é um número muito pequeno. Acho importante e cuidadoso a gente não analisar [as escolhas da curadoria do] festival como se houvesse uma espécie de cota [para mulheres]. Os filmes foram selecionados porque são bons.

    Acredito que a vitória do Baronesa tenha acontecido porque este foi um filme que se impôs, um filme potente. Claro que é importante essa vitória, né? A gente tem aí dez anos [de Mostra Aurora] e nesse tempo a Maria Clara Escobar [venceu] com o Os Dias Com Ele e agora a gente venceu.

    Leo Lara/Universo Produção

    A equipe de Baronesa foi deliberadamente montada para ter uma maioria de mulheres e tem uma particularidade: a Marcela [Santos, som direto] e a Giselle [Ferreira, assistente de direção] nunca tinham pisado num set de cinema. A Fernada de Sena tampouco tinha fotografado um filme. Ela só tinha trabalhado em filmes de faculdade como assistente de fotografia. Até o Baronesa ela não tinha, de fato, entrado num set para receber uma grana num esquema mais profissa. Foi uma equipe ultra reduzida, com quatro mulheres no set por muito tempo.

    É isso. Esse cuidado é importante. Os filmes estão lá porque são bons. A gente tem que sempre tentar dar essa discernida nas coisas. Que esse seja o caminho natural. Que a gente produza mais, que a gente dirija mais, que a gente se fortaleça e continue porque é o único caminho possível.

    Baronesa é um filme que se aproxima com cumplicidade das pessoas que retrata. Quanto tempo levou a produção do projeto? Como foi o primeiro contato com a Andreia e com a Leidiane?

    Baronesa foi um filme que começou como exercício. Comecei a observar os ônibus que passavam pela cidade e os ônibus que levavam para a periferia sempre tinham como destino, na maioria das vezes, bairros com nomes femininos. Então em comecei a pesquisar esses nomes, frequentar esses bairros e ter um contato com essa periferia de Belo Horizonte. Não que a periferia seja algo novo a mim. Eu sou do interior de Minas e cresci num bairro de periferia. Mas a periferia da capital, de fato, era nova para mim.

    Baronesa foi meu TCC. Depois disso a gente conseguiu ser aprovado num edital com uma verba de R$ 56 mil. A gente já tinha cercado alguns lugares depois de espalhar panfletos pelos bairros, em salões de beleza. Chegamos ao bairro Juliana no qual a Andreia era uma cliente de um salão de beleza que eu já me interessava em filmar. Ela não queria participar desse filme.

    Eu começo a filmar num salão de beleza. A gente se muda, equipe e eu, para o bairro Juliana durante um mês, filma essa dona desse salão de beleza, que seria uma personagem que depois caiu na montagem final e eu começo a cercar a Andreia. Me mudo, sozinha, para a Vila Mariquinha, que é uma favela dentro do bairro Juliana, onde eu consigo convencer ela [Andreia] a filmar duas vezes por semana, terças e quintas, à tarde. Claro que esse número foi mudando, ela foi se envolvendo mais com o projeto, mas pro filme a gente foi estabelecendo uma relação que foi muito importante.

    Daí passaram cinco meses e a Leid chegou um pouco mais pro meio [da produção do filme]. Morei lá sozinha, fiquei amiga delas. A gente conversava, via as cenas, ensaiava as vezes e outras não. A gente pensava em cenas juntas e isso foi absurdamente interessante porque depois desses meses que eu morei a gente voltou pra fazer dez diárias isoladas e não teve filme. Depois de todo o processo de convivência, quando a gente se distanciou e foi filmar num esquema mais normal não deu em nada.

    Então o primeiro contato com a Andreia foi esse. Eu estava num salão de beleza, ela entrou, me ignorou, trocou de roupa e experimentou uma roupa que vendiam lá. Eu lembro que eu vi os olhos dela no espelho e eu fiquei muito encantada. Me hipnotizava o jeito que ela olhava e o jeito que ela nos ignorava, porque todo mundo no salão queria saber quem a gente era. Isso, para ela, não fazia a menor importância. Ela entrou, experimentou uma roupa, não comprou, me fitou com os olhos e saiu. Esse foi o primeiro contato com a Andreia. O primeiro contato com a Leidiane foi filmando na casa da Andreia, num dia que ela entrou com pertences, o que eles chamam de kit, para levar para o marido preso. Daí eu falei: "Ah, bora fazer uma cena". Eu estava entediada com a Andreia em casa. Não tinha mais quem filmar. A Leidiane foi um presente pro filme.

    Divulgação

    A fronteira entre a realidade e a interferência na realidade permeia Baronesa, como foi o desenvolvimento do roteiro?

    O roteiro é feito no dia-a-dia na medida que eu ia convivendo com essas meninas, cada vez que as coisas iam acontecendo. Por exemplo, quando a gente começou a filmar não tinha guerra. No meio das filmagens uma guerra entre traficantes locais explodiu. Isso mudou o rumo do filme.

    Algumas cenas eram ensaiadas e muitas provocadas. Os takes são muito longos, de duas horas, tem take de três horas e aquilo dali, no meio daquele take a gente tem, de fato essas cenas: Algumas absurdamente documentais, algumas absurdamente ficcionais. O filme oscila nisso o tempo inteiro.

    Filmes ambientados em favelas brasileiras quase sempre mostram homens nos papéis principais. No seu filme, a representatividade é um gesto vital para dar amplitude para um ponto de vista silenciado no cinema nacional. Você diria que isso é o que há de mais enriquecedor em sua obra?

    Bom, pra mim o mais enriquecedor da obra é a maneira como eu consegui filmar essas pessoas. Tanto que elas estão dispostas, sabe? Tanto que nós estávamos dispostas a tal. É muito diferente de gêneros. Claro, eu reconheço, isso é raro, mas não acho que esteja aí a maior importância. Conseguir captar determinados momentos muito explosivos do filme, eu diria, como a cena do tiroteio, a cena das crianças, isso vem de uma convivência absurda e demos muita sorte de conseguir estar com excelentes atrizes. Isso é um encontro raro. Acho que a coisa mais rica é isso, são esses encontros que são raros.

    Num debate extra-oficial, você disse que o marido de uma das mulheres retratada no filme não gostava da ideia dela ser filmadas. Como se deu isso? Isso afetou o filme de alguma maneira?

    A maioria dos maridos das mulheres que filmei não estão no corte. Maridos, irmãos, namorados não eram a favor de filme nenhum. Sim, na maioria das vezes a gente filmava escondido ou fora da presença deles para não atrapalhar esse fluxo da vida das atrizes. E o acordo inicial é de que esse filme seria nosso segredo, que eles não assistiriam esse filme. Bom, vou cumprir esse acordo. Eles não vão ver esse filme.

    Beto Staino/Universo Produção

    Mas enfim, isso afetou demais o filme. Eu perdi várias personagens que eu adoraria ter no filme, que fizeram uma ou duas cenas e não puderam voltar — ou então as cenas foram interrompidas no meio. No caso da Andreia, o marido é dela super tranquilo em relação ao filme, mas a Andreia não queria que isso influenciasse na vida dos dois. Os horários de gravação eram bem mais restritos do que seria se eu estivesse filmando homens porque daí eles são donos de seus destinos e caminhos. Filmar mulher em periferia é difícil. Passa por várias coisas. Essa questão da dominação masculina nas decisões é triste. Pra mim foi muito mais difícil lidar com isso, com essa impotência, e ter que aceitar essa situação do que com a guerra do tráfico em si.

    Baronesa gerou um debate caloroso e produtivo entre a crítica. Houve troca de cartas abertas entre críticos e críticas, onde a pauta foi a existência ou não de um suposto "voyeurismo" na forma como essa história foi contada. Você chegou a ter conhecimento dessa discussão? O que acha dela?

    Sim, eu acompanhei esse debate. Me questiono se quem fala de voyeurismo nesse filme já conseguiu tirar uma selfie. Me pergunto se [essa pessoa] realmente ia conseguir fazer um filme. Porque, veja bem, achar que planos como aquele primeiro plano daquela garota dançando, absurdamente decupado, milimetricamente pensado com a câmera, com figurino perfeito para aquela cena... É óbvio que aquilo foi muito ensaiado. Aquele figurino foi comprado. Claro que essas pessoas [retratadas em Baronesa] não estão muito bem posicionadas conversando assuntos maravilhosamente pertinentes, numa narrativa praticamente linear. É ridículo que essa figura não tenha a menor ideia do que é um filme, do que é fazer um filme.

    Baronesa [o bairro que Andreia sonha em ir] não existe. Enfim, teve muito trabalho de roteiro. Esse filme é fruto de seis anos de trabalho intenso e aquela entrega não se dá só na observação. Você não entra na casa de alguém, de maneira alguma, e consegue tirar isso dessas pessoas. Você não consegue construir isso das pessoas de uma maneira que não seja absolutamente honesta, com ou sem câmera. Então, assim, que pena que eu sinto desse texto dessa gata. Parece que não viu o filme. É triste. É lamentável.

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