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    Mostra de Tiradentes 2017: "Eu acredito muito no poder da imagem", diz diretor de Lamparina da Aurora (Entrevista)

    Em entrevista para o AdoroCinema, Frederico Machado falou sobre suas influências como cineasta, sobre sua formação como cinéfilo, sobre o trabalho de preparação de elenco em Lamparina da Aurora, sobre seu próximo filme, entre outros assuntos.

    Habituado a explorar temas densos em seus trabalhos no cinema, o diretor Frederico Machado levou seu longa-metragem mais ambicioso até então para a Mostra de Cinema de Tiradentes, onde foi exibido dentro de competição na Mostra Olhos Livres.

    Da cidade histórica mineira, Machado voltou para casa em São Luis, no Maranhão, com o prêmio Prêmio Carlos Reichenbach após Lamparina da Aurora ter sido eleito pelo Júri Jovem o melhor longa-metragem da Mostra Olhos Livres.

    Com apenas três atores no elenco (Buda Lira, Vera Leite e Antonio Saboia) e uma equipe composta por apenas sete pessoas, Lamparina da Aurora foi realizado num esquema "totalmente independente" o filme é quase experimental e se centra nas conexões e incomunicabilidades que se estabelecem entre esses três personagens, trazendo uma atmosfera de tensão, flertando com o cinema de terror e suspense.

    Em entrevista para o AdoroCinema, Machado falou sobre suas influências como cineasta, sobre sua formação como cinéfilo, sobre o trabalho de preparação de elenco em Lamparina da Aurora, sobre seu próximo filme, entre outros assuntos.

    A Mostra de Cinema de Tiradentes é uma vitrine para um cinema onde a noção de autoralidade é valorizada. Seu filme, Lamparina da Aurora, apresenta uma radicalização autoral em sua proposta e foi premiado numa mostra dedicada a filmes mais experimentais. Como foi receber esse reconhecimento num dos principais festivais de cinema do país?

    Foi uma felicidade grande demais ter sido selecionado em meio a tantos filmes. A gente é do Maranhão e está fazendo um cinema independente. Fizemos um filme que não tem edital por trás, feito pelos alunos da escola [Escola Lume de Cinema]. Ser selecionado já é uma vitória. A premiação realmente foi uma surpresa muito grande, porque a seleção estava muito forte, com filmes muito bons como o do [Luiz] Rosemberg [Filho] e o sobre o [Jean-Claude] Bernardet.

    A vitória dá uma possibilidade muito grande de circulação do filme. O filme é quase experimental na sua linguagem, mas flerta com o cinema de gênero, flerta com o cinema de terror e flerta com um estilo de drama mais europeu, com uma linguagem mais na linha de [Andrei] Tarkovski, Béla Tarr e [Carl Theodor] Dreyer. Enfim, uma visibilidade boa pode vir para o filme com esse prêmio. A gente está muito feliz com isso.

    O Lamparina está quase fechando distribuição internacional com um agente de vendas. Então é incrível o rumo que no qual o filme está caminhando. Esse é o primeiro filme no qual a gente vai ter um agente de vendas internacional, a possibilidade de passar em festivais maiores internacionalmente, ter uma distribuidora de fora do Brasil carregando o filme, botando nos braços e tentando levar para os festivais e acho que há uma possibilidade muito grande desse filme percorrer uns festivais legais que tem um certo renome e é um filme feito de forma totalmente independente. Essa possibilidade é um feito bem legal.

    Divulgação

    O filme Lamparina da Aurora tem uma proposta de apresentar um cinema puro, um cinema onde a visualidade é ainda mais importante do que o habital. O que mais te atrai nessa linguagem?

    Acho que é mesmo a força da própria imagem. O que eu acho interessante, particularmente, no Lamparina é que ele foge completamente do que é produzido atualmente no Brasil. O filme é bem original em sua proposta. Até mesmo fora do Brasil eu não vejo muitos outros filmes dialogando tão claramente com Lamparina da Aurora.

    Logicamente há referências, principalmente referências visuais e sonoras de outros realizadores, mas eu acredito muito na forma como o filme foi montado. É um filme bem onírico, é quase como se fosse um pesadelo, um sonho visto pelos próprios personagens. É um filme que mistura muito o que é realidade e o que pode vir a ser sonho ou pesadelo — há esse limbo onde os personagens se encontram durante todo o filme.

    O filme não tem diálogo entre os personagens, mas ao mesmo tempo tem uma narrativa, uma narração de um poeta que dá brechas para o entendimento da narrativa através da poesia, e também conta com um trabalho sonoro muito arrojado na sua concepção. O filme tem um som bem forte, bem propenso até a criar uma narrativa extra. Eu acredito muito nesse poder da imagem que conta uma história, no próprio poder do som — e o som que eu digo não é nem a música em si, mas toda ambiência sonora que conta uma história ou que pelo menos tenta... Não sei se isso consegue atingir tantas pessoas assim, mas há uma tentativa do som também contar uma história por trás daquelas imagens.

    Eu faço a fotografia do filme — a fotografia de todos os meus três filmes é minha — justamente também para ter esse poder visual muito claramente sobre essa parte da obra. Isso possibilita ao próprio diretor —  no meu caso — um poder muito grande sobre o que eu estou querendo mostrar de fato, desde a parte do som, que fui eu que fiz também. É um controle realmente maior, na realidade. Há essa possibilidade de fazer o filme e ir tratando dos meus temas. É um filme muito pessoal, no qual eu fiz o roteiro, a direção de arte, fiz o som do filme, a direção, a produção, enfim... Essa experiência me dá a oportunidade de controle mesmo.

    Divulgação

    Esteticamente, Lamparina da Aurora apresenta a fotografia que talvez seja a mais bela de seus longas até então. Como foi para você executar essa função? Você buscou referências de outros filmes?

    É tudo bem engraçado porque as referências estão na própria história que eu tenho mesmo em relação ao cinema. Eu sou cinéfilo acima de tudo. Vejo muitos filmes desde os nove anos. Tive a sorte de saber desde de criança que queria fazer cinema. Eu nasci em São Luis e fui para o Rio de Janeiro com 10 anos de idade. Morei ao lado do cinema Estação Botafogo, que funcionava quase como uma cinemateca ali na rua Voluntários da Pátria. Eu vi todos os [filmes do Rainer Werner] Fassbinder com 12 anos de idade. Eu vi Nastassja Kinski. Tinham muitas mostras no Estação. Toda minha cinefilia foi ao lado do Estação, aprendendo cinema vendo os filmes. Hoje, depois de vinte ou trinta anos acumulando essas experiências de vida de ver filmes, naturalmente essas referências aparecem no meu cinema, mas não é uma coisa muito pensada.

    Eu vejo muitas referências em Lamparina da Aurora, visualmente falando, do [Roman] Polanski no início de carreira, de filmes como O Inquilino, que é um filme quase feito apenas de cenas internas. Naturalmente eu vejo algumas similaridades com outros tipos de filmes, com outros filmes e com outros fotógrafos também. Eu queria criar uma ambiência mais forte para lembrar [Ingmar] Bergman na densidade dos personagens, tratando dessa densidade de maneira fotográfica. Essa densidade também é revertida para uma fotografia mais de planos fechados quando há os personagens presentes.

    Há uma natureza que é oponente na cena para também criar um sentimento de isolamento diante de tudo, da situação toda, mas não houve um filme específico que tivesse uma referência tão clara para mim. Isso acabou surgindo no processo de montagem do filme. A gente logicamente pensa em toda uma concepção visual a partir do momento em que você está fazendo o roteiro. Quando você vai para o set, muda bastante essa concepção visual por causa do próprio caráter de produção independente do filme. Esse próprio processo foi mudando de acordo com o andar do filme. Muda-se muito ainda depois da parte de montagem. Então é um crescente de coisas. Há a influência que a gente vai adquirindo no próprio processo de filmagem.

    Jackson Romanelli / Universo Produção

    Lamparina é um filme dramático que praticamente não tem diálogos exige particularidades importantes do elenco, que conta apenas com três atores. Como foi o trabalho de preparação de elenco?

    A gente escolheu os atores cerca de três meses antes das filmagens. Eles não são atores maranhenses. É legal frisar isso. [Lamparina da Aurora] Foi o primeiro filme no qual não trabalhei com atores maranhenses. O Exercício do Caos e o próprio O Signo das Tetas foram feitos com não-atores [de cinema]. Em O Signo das Tetas, o protagonista é um ator de teatro, mas tirando ele [o resto do elenco] é só de pessoas da comunidade mesmo, então são atores ainda amadores, que estão começando.

    Para esse trabalho, especificamente, eu resolvi falar com atores profissionais que já tinham feito cinema ou teatro, mas nenhum dos três é do Maranhão. Procurei pessoas que tivessem a ver fisicamente com o que eu queria dos personagens. Eu entrei em contato com eles e eles vieram para São Luis, entraram como produtores associados do filme. Eles não cobraram salário, então entraram como produtores associados para, se houver algum retorno financeiro, eles terão uma parte desse retorno. Eles acreditaram, de fato, no filme. Acreditaram nos que tinham visto nos meus filmes anteriormente e quiseram trabalhar comigo.

    Eles vieram para São Luis cerca de 15 dias antes do começo das filmagens. A gente teve um trabalho de direção de elenco na locação. Lemos bastante o roteiro, criamos sequências, criamos sequências que não entraram no filme para desenvolver esses personagens e esse era um trabalho muito singelo, muito delicado mesmo. Inicialmente o filme teria alguns poucos diálogos, teria bem mais do que tem agora que só tem diálogo no final, mas o roteiro original tem alguns outros diálogos. Realmente era um filme muito silencioso. O trabalho foi quase de acalanto, acalanto entre os atores. A equipe é muito pequena, eu falo muito baixo no set e como a câmera está sempre próxima dos personagens quando há acting de fato. A gente queria fazer um diálogo com os olhares, com movimentação do corpo, com toque, com gestual e isso foi bem trabalhado na pré-produção. Durante as filmagens também ocorria muito disso. Eu falava muito baixinho, falava bastante com os atores e eles entenderam bem o que cada personagem teria de passar.

    Na realidade é como se fosse uma história da própria humanidade esses três personagens. O personagem do Antonio [Saboia] pode ser um filho, pode ser um amigo, pode ser o próprio Buda [Lira], o inconsciente desse personagem do Buda. Esse formato é uma forma de tentar retratar essa angústia, esse caos, essa finitude desses personagens todos diante do filme. Eles entenderam essa complexidade do filme e a própria abrangência experimental que o filme propunha e isso se deu muito através do diálogo e da confiança, tanto deles para comigo quanto de mim para com eles.

    O Exercício do Caos, é inspirado numa ópera de Serguei Prokofiev. O Singo das Tetas tem uma cena em que a música de Franz Schubert tem uma função importante. Em Lamparina da Aurora foi a vez de subverter Erik Satie. Qual sua ligação com a música clássica? Como você constrói a identidade musical de seus filmes?

    Linda essa pergunta. Pouca gente fala da importância da música pra mim. Eu tive uma banda punk quando era criança, quando era jovem, tinha 15 anos. Quando eu voltei para São Luis eu abri uma loja de CDs importados e vendi muito álbums importados porque não havia na época uma loja assim em São Luis. Então eu tenho um envolvimento muito forte... Eu tive uma fanzine falando sobre música mais focada no rock alternativo.

    Eu vim de uma família de dois artistas. Sou filho único. Meu pai era poeta e minha mãe era escritora — ela inclusive foi secretária de cultura na década de 80 em São Luis. Eu vim desse ambiente de óperas, de música clássica, tendo também essa ligação muito forte com essa música mais independente, mais experimental. Acho que isso tudo juntou-se a esse caleidoscópico cheio de referências, de informações.

    Tanto é que, em todos os meus filmes, mesmo não tendo muitos diálogos, são bem musicais, todos eles. A música tem uma força muito grande até mesmo para explicar esses personagens.

    Com relação a Lamparina da Aurora, que foi um filme sem recurso nenhum, a produção toda do filme foi de R$ 30 mil, contando já com trabalho de edição, custos de viagens, passagens aéreas, alimentação da equipe, pagamento de locação... Enfim, a câmera [utilizada no filme] é da Lume Filmes, o som é da Lume, mas há todos esses outros gastos.

    Geralmente a gente está à procura da possibilidade de compor uma trilha sonora ou achar uma trilha sonora que condizesse com o filme e que fosse possível pagar. Foi através de pesquisas na internet, num programa que tem músicas gratuitas, que a gente chegou a essas músicas todas.

    Essa música [uma das seis composições conhecidas como "Gnossiennes"] do Erik [Satie], no caso, foi fruto de uma pesquisa, de fato, pois a gente queria colocar música clássica no filme, queria uma música que remetesse a magia, a sonho e eu acho que a música clássica remete muito a isso, remete a uma coisa mais sensitiva e mais misteriosa também. Sem desmerecer a música pop que eu também adoro.

    Com relação à música clássica, especificamente, a intenção é elevar o filme a um caráter quase espiritual. Eu acho que essas obras todas que a gente está fazendo visam se elevar a outro caráter para além do físico. A gente quer transpor isso. A gente quer passar disso, na realidade. O caso não é nem de transpor, mas de passar acima disso.

    Como está a produção de As Orbitas da Água, que encerra a trilogia composta por Exercício do Caos e Signo das Tetas?

    Eu cheguei ontem à noite aqui em São Luis e já tivemos uma reunião hoje de manhã (segunda-feira, dia 30 de janeiro) com a equipe toda. A equipe de As Órbitas da Água será quase a mesma que trabalhou no Lamparina da Aurora — também composta por estudantes. No elenco estará o Cristiano Burlan, que também é realizador e vai atuar no filme; vai estar a Rejane Arruda, que fez [o curta] Eclipse Solar, do Rodrigo de Oliveira e já trabalhou com Ruy Guerra em O Veneno da Madrugada; a gente está tentando fechar com um ator de uns 70 anos que a gente não pode dizer o nome ainda, mas é um ator de referência dentro do cinema brasileiro, para fazer o papel principal do filme, que é um idoso que vai comandar e manipular toda uma vila de pescadores.

    O filme é passado numa vila de pescadores e vai ser filmado em Barreirinhas, na região dos Lençóis Maranhenses, e conta a história de um casal nessa vila de pescadores que se vê manipulado por um casal de estrangeiros que chega nessa vila. O filme é a última parte da trilogia começada por O Exercício do Caos e O Signo das Tetas que são, na realidade, três filmes que tentam dialogar muito entre si.

    Há novamente a poesia do meu pai, que está por trás de todas essas obras, mas os temas dos personagens vão finalmente ficar mais claros para o público. É um filme que eu acho que vai clarificar um pouquinho a ideia de Exercício e do Signo, que talvez tenham sido um pouco herméticos, um pouco estranhos como formato.

    As Órbitas da Água é o único filme que tem realmente um roteiro dos três. Os primeiros tinham apenas pensamentos e estrutura. Esse não. Esse tem todo um roteiro decupado, com todos os diálogos, todas as sequências, justamente para fechar o que teve início nesses dois primeiros filmes. Vai ser filmado em abril. Vai ser um filme um pouquinho maior que os outros dois em termos de produção.

    Vai ser maior em duração também?

    Provavelmente sim. Acredito que o filme vai ter umas duas horas [de duração]. Depende muito do processo de filmagem, do que a sequência vai pedir. Como o roteiro tem quase 120 páginas, acredito que vai ser um filme de uns 120 minutos, mais ou menos.

    Vai ser bem difícil, porque vai ser um filme de muitas cenas externas, muito passado num barco, numa canoa. Quase um quarto do filme se passa em algumas canoas. Tem algumas coisas que a gente também quer colocar no filme sendo narradas por um coral. Toda a história do filme trata de mitos. É um realismo fantástico, tem muita fábula, muita fantasia, mas apesar de ser uma fábula e ter muita fantasia e muita magia mesmo, o filme é bem fácil de ser compreendido pelo público de modo geral.

    E o filme também é inspirado, mesmo que levemente, em alguma outra obra?

    Esse não. Ele ainda não tem nenhuma referência musicalmente. Ele pode vir a ter nesse processo que eu falei. Eu acredito muito nessa possibilidade do filme ir caminhando, ir crescendo e virem outras referências que vão mudando o projeto inicial. Há [essas mudanças] até mesmo quando o filme é exibido. Quando o filme é exibido o filme já ganha outro status. As críticas falam sobre o filme e o filme já vai para outro caminho. Acho que o processo cinematográfico é tão rico e tão belo que desde sua concepção até a sua realização até como é exibido o filme se norteia o que esse filme é.

    Se o Lamparina da Aurora tivesse estreado num festival um pouquinho diferente — não digo maior porque é diferente — como o Festival do Rio, seria outro tipo de visualização, outro tipo de crítica para esse filme, então eu acho que depende muito de como esse filme é visto e como o filme é recebido e aí o caminhar desse filme... O que o filme pode significar para o cinema e para mim mesmo depende muito do processo como um todo, inclusive a sua exibição.

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