A noite de quarta-feira (25) contou com sessões de longas das duas principais mostras competitivas da 20ª Mostra de Tiradentes dedicadas ao formato.
O filme de mistério quase experimental Lamparina da Aurora, de Frederico Machado, foi exibido na Mostra Olhos Livres e se firmou como o trabalho mais esfíngico apresentado até então nesta edição do festival. Já na Mostra Aurora, o destaque foi a exibição do drama Sem Raiz, de Renan Rovida, que conversa com as questões de representatividade feminina e com as temáticas sociais presentes em muitos dos filmes de Tiradentes.
Medo e delírio
Os limiares entre sonho e pesadelo, miragem e realidade, vida e morte, dor e prazer se dissolvem no longa-metragem Lamparina da Aurora, exercício de radical autoralidade do cineasta maranhense Frederico Machado. A obra serve como homenagem póstuma ao poeta Nauro Machado (1935 - 2015), pai do diretor, e completa a trilogia temática formada pelos filmes O Exercício do Caos (2013) e O Signo das Tetas (2015).
O mais hermético dos longas de Tiradentes até aqui encontrou a resistência de muitos espectadores, que abandonaram a sessão antes do término do filme. Tal atitude não é difícil de explicar, afinal o filme faz pouquíssimas concessões ao público.
Com apenas três atores, quase nenhum diálogo e uma atmosfera densamente aflitiva, a narrativa de Lamparina da Aurora é esparsa e cheia de eclipses. Um homem (Buda Lira) visivelmente atormentado encara os dias com uma postura sonâmbula. Ele divide seus dias numa casa em uma fazenda isolada habitada por ele e sua esposa (Vera Leite). Os dois fazem refeições juntos, mas o espectro da incomunicabilidade os ronda. Quando a mulher sugere aproximação sexual, abre-se no teto uma goteira de sangue. O som do ponteiro do relógio e o badalar dos sinos são sentidos por eles como espinhos que rasgam suas carnes. A rotina dos dois é interrompida pela chegada de um homem misterioso (Antonio Saboia). Este homem, de modos ora doces, ora diabólicos, aparenta ser filho do casal, mas esta informação não é cedida ao espectador.
Assim como em O Exercício do Caos e O Signo das Tetas, Machado preocupa-se mais com as dilatações do tempo do que em amarrar uma história com início, meio e fim. A fragilidade masculina, a religiosidade, a sexualidade visceral, a busca existencialista explorada através do contato com a natureza são temas constantes da carreira do diretor e retornam aqui mais fortes do que nunca, amparados por simbologias visuais e sensoriais (a trilha sonora, que chega a subverter Erik Satie, é uma personagem a parte).
Há em Lamparina da Aurora um breve flerte com as linguagens do cinema de terror, mas o longa-metragem de Frederico Machado se estabelece num território próprio, para bem e para o mal. Muitas imagens são potentes (o longa tem a melhor fotografia dentre todos os realizados por Machado), mas em alguns momentos o filme oculta até demais as chaves para sua compreensão por parte do público.
Vamos à luta
Com uma estética documental, muitas cenas rodadas pelas ruas (a presença da câmera chega a ser notada e comentada) e a apresentação de dramas "desdramatizados", Sem Raiz carrega paridades com traços do cinema neorrealista, fazendo uma ponte com a realidade de um Brasil marcado por uma crise econômica que parece não ter fim, desemprego e descalabros políticos.
Apresentado pelo diretor Renan Rovida como um filme anticapitalista, o longa-metragem se divide em segmentos — Sem Emprego, Sem Lucro, Sem Propriedade, Sem Comunidade — para mostrar histórias de mulheres que tentam sobreviver em meio às dificuldades de um mercado de trabalho hostil aos sonhos delas.
"Patroa, patrão... filho da puta", diz Esperança (Maria Tereza Urias), que foi demitida injustamente e tenta planejar uma forma de pagar enquanto vende pelas ruas flores que apenas outras mulheres compram. Enquanto isso, Débora (Deborah Hathner), cuja tia a ensina a "não se amarrar a dinheiro", trabalha como atendente de telemarketing num horário ingrato, ficando suscetível a situações de risco no trajeto de volta para casa. Ruth (Ruth Melchior) é uma corretora de imóveis que há tempos não fecha um negócio e se divide entre a faculdade, o filho e o namorado um tanto insensível. Juana (Laura Brauer) é acusada de desperdiçar sua vida acadêmica por conta de seus posicionamentos políticos.
Em paralelo aos dramas vividos por essas mulheres no contexto urbano, Carlota (Carlota Joaquina) trabalha com agricultura. A presença dela no filme serve como contraponto, mostrando as possibilidades de uma vida no campo.
O diretor Renan Rovida filma as personagens com bastante respeito e dedica a suas personagens um olhar humanista, mas Sem Raiz tem alguns problemas de ritmo, com sequências que se arrastam demais e outras que são muito curtas, como as dedicadas à Carlota. O filme também sofre de um mal comum a projetos episódicos: Alguns segmentos se destacam muito mais que os outros em densidade.