Um dia depois do incendiário Era o Hotel Cambridge ser ovacionado ao discutir a questão da moradia e dos "Brasis dentro do Brasil" na 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes, o documentário Martírio, que apresenta corajosamente a luta por território do povo Guarani-Kaiowá, também recebeu uma calorosa recepção do público, como aconteceu quando foi exibido no Festival de Brasília e na Mostra de São Paulo.
"Desejo muita emoção nessa projeção. É importante que o Brasil conheça o Brasil", afirmou o diretor Vincent Carelli ao apresentar o filme diante de centenas de espectadores. Carelli já tinha ciência do poder do material que produziu e sua vontade se concretizou: Ao longo da sessão muitas pessoas não conseguiram evitar as lágrimas.
"A gente estuda a História do Brasil pensando que a colonização é uma coisa do passado, [pensando que] ela começou e ela acabou. Esse filme é um atestado ao fato de que a colonização é algo que ainda ocorre hoje em dia. Ela está em curso", disse o codiretor e diretor de fotografia Ernesto de Carvalho, que também criticou o governo de Michel Temer. "Esse golpe que a gente viveu não é nada mais do que um aprofundamento dessa colonização, da destruição da diferença e de possibilidades de uma vida que não seja fundamentada pelo consumo." Tita, codiretora e montadora de Martírio, aproveitou para ressaltar que o filme foi financiado através de uma campanha de crowdfunding que atraiu quase 900 doadores.
Cinema direto e de guerrilha: "Todo mundo sabe que essa terra é nossa"
No ano passado, o termo "pós-verdade" foi eleito a palavra do ano no Dicionário Oxford. O conceito da palavra indica uma forma de interpretar a disseminar dados dando mais importância à emoção ou crença pessoal pré-estabelecida. O verbete costuma vir carregado de uma conotação negativa, mas entre 2012 e 2013 algo que poderia ser lido como uma "pós-verdade" que lançou luz a uma questão que passou à margem da opinião pública por décadas: O sofrimento do povo Guarani-Kaiowá em sua pacífica luta para fazer valer seus direitos.
Muitos devem lembrar da onda que tomou ativistas e apoiadores nas redes sociais, quando milhares de pessoas mudaram seus sobrenomes em perfis no Facebook para "Guarani-Kaiowá". O gesto de solidariedade surgiu após circular pela internet uma carta assinada por líderes da comunidade Pyelito Kue, que enfrentavam um processo de despejo e fizeram um apelo ao Governo Federal, afirmando que seria uma "morte coletiva" para o grupo de 170 indígenas sair do local de onde vivem. O documento gerou comoção nacional e internacional ao ser interpretado como o anúncio de um suicídio coletivo.
"Eles anunciavam que ficariam lá até serem mortos, não que se suicidariam, mas o entendimento geral de que haveria um suicídio ajudou muito a deter o despejo", afirma um dos índios escutados em Martírio, filme de Vincent Carelli que apresenta com didatismo um vasto olhar histórico, antropológico e também emotivo sobre o tema.
Carelli começou a rodar o filme em 1988, antes mesmo de saber o que faria com aquelas imagens, e assim fez até 1999, acompanhando o que os índios chamam de retomada da tekoha, a terra sagrada, numa incessante busca por suas terras ancestrais, dilaceradas pela ambição do agronegócio e pela ação do Estado. Criador do projeto Vídeo nas Aldeias, dedicado à formação de cineastas indígenas, e militante da causa desde a década de 1970, o cineasta retornou ao grupo que acompanhou décadas antes após o assassinato do cacique Nísio no final de 2012 e rodou as cenas mais recentes de Martírio.
Entre passado e presente, o filme apresenta muitas frentes narrativas. Há a justaposição dos trechos gravados entre por Carelli e sua equipe nos dois períodos distintos; há a intenção de dar profundidade histórica à perseguição aos índios ao longo da História do Brasil; há a colagem de materiais de arquivo e reportagens jornalísticas que ganham muito tempo de tela.
"Não foram os brancos que fizeram a Terra"
A universalidade do luto é um recurso utilizado pelo filme para cativar a atenção e empatia do espectador, afinal, em um filme sobre genocídio a morte nunca seria apenas coadjuvante. São inúmeros os depoimentos de indígenas que perderam, pai, mãe, filhos, sobrinhos, irmãos e irmãs. É impossível não se emocionar com o desespero de uma sobrinha no funeral do tio assassinado à mando de fazendeiros. Em um momento tocante, uma indígena mais idosa chora copiosamente ao lembrar das indignidades à qual sua comunidade foi submetida e escuta uma frase que sintetiza o caráter de luta e coragem que permeia a obra: "Tente ser forte. Você tem que falar".
A postura pacifista dos Guarani-Kaiowás diante de seus inimigos evidencia a desproporcionalidade dessa disputa. É interessante notar que os índios estão sim, revoltados, mas, movidos por sua espiritualidade chegam até a rezar por aqueles que os fazem mal, justificando porque foram chamados pelos jesuítas de "gente de índole benigna, costumes pacíficos e tendências bem pronunciadas para a civilização". Martírio também prova sua horizontalidade ao incluir diversas cenas gravadas pelos próprios índios, como um tenso ataque armado realizados por capangas de fazendeiros contra uma ocupação indígena.
Na parte didática do filme, é mostrado como o Estado brasileiro teve uma ação fundamental no drama daquelas pessoas, mostrando que o desdém das autoridades pelos Guarani-Kaiowás do Império à República, de Dom Pedro II à Dilma Rousseff. O longa metragem, aliás, não se atém a questões binárias de esquerda ou direita, e critica a postura do governo da ex-presidente. "Nós todos votamos na Dilma para ela ouvir apenas os fazendeiros?", questiona uma índia. Outros episódios escabrosos da História do Brasil resgatados pelo filme são a criação do Serviço de Proteção ao Índio pelo Marechal Rondon, que, apesar do nome, visava dissolver as tradições dos povos descaracterizando suas culturas, e a criação da Guarda Rural Indígena, milícia armada formada por índios-soldados treinados durante a ditadura militar que espalhava terror nas aldeias com a prática de espancamentos, estupros e torturas de outros índios.
Quando foca na atulidade, Martírio aborda as discussões públicas sobre a PEC 215 — que visava tirar do Executivo e colocar nas mãos do Legislativo o poder de definir as áreas de reservas indígenas —, expondo discuros dos mais reacionários proferidos por políticos como André Puccinelli (PMDB), ex-governador do Mato Grosso do Sul, pela senadora Kátia Abreu (que estava no PSD na época) e do senador Ronaldo Caiado (DEM), que na época era deputado federal.
Talvez a melhor imagem de arquivo que o filme exibe é o potente e histórico discuro do líder indígena Ailton Krenak na Assembleia Nacional Constituinte de 1987, quando o ativista pintou o rosto enquanto argumentava contra a proposta de excluir das demarcações de terra os índios que já tinham entrado em contato com a cultura do homem branco. É um grande momento imagético num filme em que a estética crua do cinema direto não é capaz de alcançar uma força visual independente.
As vezes o longa-metragem peca pelo excesso de informações e pela distribuição muito fragmentada dos fatos, mas enquanto filme-protesto, o trabalho de Carelli, Carvalho e Tita é digno de palmas.