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    Mostra de Tiradentes 2017: Tensões pessoais e coletivas, do campo à cidade

    Os dramas Mulher do Pai e Era o Hotel Cambridge foram exibidos abrindo a Sessão Horizonte, uma das nove mostras temáticas da 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes.

    Com um filme intimista ambientado numa pacata cidade próxima da fronteira Brasil-Argentina e um filme de alta voltagem política sobre a luta por moradia de imigrantes e migrantes na selva de pedra de São Paulo, a noite de sábado (21) deu início a mostra Sessão Horizontes na 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes.

    A Sessão Horizontes, uma das nove mostras temáticas desta edição da Mostra de Tiradentes, é voltada para produções que já tiveram alguma circulação no circuito de festivais nacionais e internacionais. Os filmes exibidos no sábado foram Mulher do Pai, longa-metragem de estreia de Cristiane Oliveira, e Era o Hotel Cambridge, de Eliane Caffé. Ambas as produções foram exibidas e premiadas no Festival do Rio e na Mostra de São Paulo em 2016.

    Para apresentar Mulher do Pai, subiram ao palco a atriz protagonista Maria Galant, a produtora executiva Graziella Ferst, e a diretora de fotografia Heloisa Passos. A diretora do filme não pôde comparecer ao evento por estar na Itália num fórum de desenvolvimento de projeto trabalhando em seu próximo filme. "A Cris está especialmente chateada por não poder estar aqui porque os dois curtas que ela fez, que são o Messalina e o Hóspedes, também foram exibidos em Tiradentes e agora o primeiro longa dela está aqui", justificou Ferst, que também falou sobre a relação de identificação pessoal que tem com o projeto e celebrou a sétima arte: "Vida longa ao cinema e aos filmes porque eles realmente podem mudar o mundo."

    Em total sintonia com a abordagem política que norteia a Mostra de Tiradentes deste ano, Eliane Caffé apresentou Era o Hotel Cambridge com um discurso de otimismo. "A gente fala muito da crise que a gente está vivendo, que é duríssima. A gente fala de retrocesso político", disse Caffé, "mas uma coisa está acontecendo e eu sinto que isso fica muito visivel quando a gente leva o cinema para o campo real da vida: existe toda uma multidão, que não é aquela multidão genérica, é uma multidão de singularidades de pessoas que estão iniciando um processo de produção extremamente rico". Em seguida, Carmem Silva, atriz-motriz do longa e líder do Movimento Sem Teto do Centro, que luta por moradia digna na cidade de São Paulo, tomou a palavra. "O filme que vocês vão ver é muito propício para o momento que o Brasil está passando. Momento de retrocesso, de perda de direitos e nós temos que resistir. Nós vivemos em vários Brasis dentro do nosso Brasil."

    Drama edipiano entre dois países

    "Fronteira é um limite que o homem criou", diz-se em Mulher do Pai. No contexto do filme, este termo homem serve menos à ideia de uma humanidade que desnhou linhas abstratas no mapa mundi e diz mais respeito às tentativas de podas do patriarcado à plenitude da vitalidade feminina. 

    Rodado no município de Don Pedrito (RS), na divisa do Brasil com o Uruguai (o filme também é uma coprodução dos dois países), Mulher do Pai apresenta de forma cadenciada uma complexa e edipiana relação entre pai e filha circundando as tensões e pulsões por uma fuga daquela realidade interiorana.

    A adolescente Nalu (Maria Galant), de 16 anos, é quem move a narrativa. Na cena inicial a jovem é apresentada ao lado de seu pai, Ruben (Marat Descartes), e de sua avó, Olga (Amélia Bittencourt), enquanto a família tece lã silenciosamente no que parece ser uma rotina austeura de trabalho. É interessante notar como desde o início o filme desenvolve sutilmente a noção de que Ruben e Nalu são como dois filhos de Olga, e não pai e filha. Nalu é orfã de mãe — chegando a se culpar pela morte dela no parto — e perde a principal figura materna da sua vida quando Olga, que era como um ponto cardeal para ela e para o pai, falece repentinamente. Daí em diante, a adolescente se depara com novos dilemas.

    Divulgação

    Ruben, outrora um prodígio amador nas artes visuais, é cego desde os 20 anos e precisa de cuidado constante. Sem nenhum tato na relação com a filha, ele parece não ter problemas em demandar que a jovem seja sua empregada doméstica, controlar os lugares para onde ela vai, com quem anda e até escutar suas conversas ao telefone. No meio deste momento tão peculiar, a atenciosa professora de artes com ares de terapeuta Rosário (interpretada pela atriz uruguaia Veronica Perrotta, que aprendeu português para atuar no filme) vai despertar as atenções de pai e filha.

    Cristiane Oliveira se mostra muito competente como diretora de um longa metragem após anos realizando curtas. Fazendo uso constante de planos médios, a cineasta enquadra os personagens em ambientes nos quais eles até são vistos por inteiro, mas não sobra muito espaço para seus movimentos, numa metáfora para as realidades de Nalu, que se sente presa na pequena vila onde nasceu, e Ruben, impossibilitado de desfrutar da sua mobilidade por conta de sua deficiência.

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    Oliveira também é habil em fazer o espectador experimentar um pouco da limitação visual do personagem de Descartes, construindo cenas que exploram muito bem o extra-campo, fazendo o publico imaginar o que se passa fora do enquadramento — da mesma maneira, aliás, que Nalu imagina de forma idealizada e utópica como seria a vida além da fronteira com o Uruguai.

    Se visualmente Mulher do Pai é um deleite, não deixa de ser uma pena que o roteiro do filme não seja tão instigante quanto o que é visto frame a frame. A relação de Nalu com sua amiga e principal confidente é marcada por diálogos pouco inspirados, prejudicados por atuações que não são nem boas nem ruins. Também soa inverossímel que uma adolescente da idade de Malu fique tão impressionada diante de um smartphone que armazena milhares de músicas e acessa a internet. 

    "Quem não luta está morto"

    Ovacionado pelo público, que aplaudiu de pé o longa-metragem após a sessão no Cine-Tenda da Mostra de Tiradentes, Era o Hotel Cambridge faz da sétima arte uma útil ferramenta no campo de batalha contra as injustiças sociais com uma estrutura formal arrojada, brincando com os mecanismos internos do cinema narrativo e documental.

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    A crise dos refugiados constitui uma das questões mais urgentes do século XXI e o retrato apresentado pelo filme de Eliana Caffé torna-se ainda mais louvável diante do contexto que surge. Nos Estados Unidos, Obama — que, vale lembrar, foi o presidente que mais deportou imigrantes ilegais na história de seu país — dá lugar a Donald Trump, que teve a xenofobia como um dos pilares de sua campanha. Enquanto isso, no Brasil, um deputado federal de extrema direita que aspira chegar ao Palácio do Planalto não se envergonha de dizer que imigrantes são "escória do mundo".

    Era o Hotel Cambridge expande o conceito de imigrante, de forasteiro, mostrando estrangeiros e brasileiros de outros Brasis juntos, comungando de esperanças e medos similares em um mesmo espaço. O filme se passa dentro do hotel presente no título da obra, que foi ocupado por grupos em prol da luta por moradia digna na cidade de São Paulo. Lá, convivem juntos nordestinos, paulistanos, palestinos, congoleses e pessoas de diversos países da América Latina que não tem condições para viver em outro lugar e seguem à risca o Inciso XXIII do Artigo 5 da Constituição Federal de 1988.

    Naturalmente há alguns conflitos menores entre eles, mas quando um tribunal decide que as famílias terão de deixar o local, cresce a tensão sobre o destino daquele grupo, que se une disposto a lutar até o fim.

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    Com construções imagéticas potentes — como o espetacular e quase escheriano plano em contra plongé da espiral da escada do prédio —, o longa-metragem traz uma estética que é audaz sim, mas ao contrário do documentário excessivamente estilizado e éticamente questionável Fogo no Mar, aqui o que está em primeiro lugar são as vozes dos personagens, com uma abordagem humanista que lembra o modus operandis de Eduardo Coutinho (e também o fato do prédio ser um personagem próprio, assim como em Edifício Master).

    Como em Taxi Teerã ou César Deve Morrer, fica muito difícil estabelecer o que é ficção do que é documental. O filme de Caffé une o melhor dos dois mundos. Os atores profissionais José Dumont (que já trabalhou com a cineasta em Narradores de Javé) e Suely Franco abrilhantam cada frame em que aparecessem, mas o foco principal está nos não-atores.

    Entre as pessoas que interpretam a si mesmas, há três personagens inesquecíveis. Carmem Silva, líder da ocupação e ativista, é uma verdadeira força da natureza. É ela quem delega tarefas, peita autoridades e diz frases peculiares como "artista não quer nada". Sua presença é totalmente alinhada à temática de valorização de mulheres fortes proposta pela curadoria da Mostra de Tiradentes. O poeta palestino engrandece o filme com sua elegância e reflexões sobre o conflito Israel - Palestina. O imigrante congolês que se envolve amorosamente com uma cineasta, traz um importante debate sobre os aspectos autoritários do Estatuto dos Refugiados de 1951, que proíbe um refugiado de participar de manifestações políticas. O africano também levanta uma questão relativa à exploração dos recursos naturais da África por países de primeiro mundo. Tântalo e cobalto, que servem de matéria prima para componentes de celulares e computadores, alimentam uma indústria sangrenta no Congo, movida inclusive à trabalho infantil, o que não parece incomodar muito companhias como Apple e Samsumg.

    Realizado através do esforço coletivo da produção do filme com o MSTC (Movimento Sem Teto do Centro), o GRIST (Grupo Refugiados e Imigrantes Sem Teto) e um núcleo de estudantes de arquitetura da Escola da Cidade, Era o Hotel Cambridge é contundente como uma marretada no concreto na parede de um prédio abandonado que não cumpre sua função social. Sim, o filme toma partido e assume uma postura combativa, mas há músculo e coração na obra de Eliana Caffé, que é muito mais do que mero panfleto.

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