Na pequena cidade argentina de Puerto Pirámides, as ruas não tinham nome. Uma professora da escola local decidiu reunir os alunos para efetuar um projeto de cidadania: juntos, entrevistaram os moradores do local para conhecer a história de cada rua e, através de um sistema de votação envolvendo todos os habitantes, batizar cada via da cidade.
A jovem diretora María Aparicio decidiu levar a história às telas em As Ruas, mistura de ficção e documentário. Por um lado, a professora é interpretada pela experiente atriz Eva Bianco, por outro lado, as crianças e moradores em tela contam as suas histórias reais diante das câmeras. O resultado foi exibido na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e o AdoroCinema foi conversar com a cineasta sobre este projeto singular.
AdoroCinema: Como você conheceu a história real por trás de As Ruas?
María Aparicio: A produtora do filme Natalia Gamarro conhecia a professora que iniciou o projeto. Ela me contou sobre essa história e começamos a trabalhar juntas no filme. Até hoje, continuo achando o que o que essa professora e seus alunos fizeram foi fascinante. Quando ela me contou essa história, eu estava pensando muito sobre filmes que cruzam ficção e documentário. Conforme o tempo passou, me dei conta de que esse é um assunto que me interessa muito: a ficção nutrida por elementos reais.
Assim que eu tive a chance, viajei para Puerto Pirámides. Não conhecia a Patagônia, não conhecia a pesca local, não conhecia nada sobre o lugar. Na primeira viagem, conheci Eugenia e muitas das pessoas que participaram do filme. Trabalhei com o povo de lá, conheci as crianças da escola e depois disso, retornei à Córdoba. Começamos a escrever o roteiro, pensar o trabalho de câmera, pensar em como filmaríamos. Regressamos à Puerto Pirámides, filmamos durante três semanas e, dois anos e meio depois, terminamos o filme.
O quando desta história foi roteirizada?
María Aparicio: O roteiro que criamos era mais uma ferramenta para a equipe técnica, para facilitar a nossa comunicação e organizar o que queríamos fazer. As pessoas não leram diálogos, só poucas situações. Nós apresentamos alguns temas iniciais para eles, umas pequenas ideias e eles trabalhavam em cima disso. A presença de Eva Bianco, que interpreta a professora e de Mara Santucho, a mulher da rádio, foi muito importante. Elas foram importantes porque conduziram as crianças, os entrevistados. Com as pessoas da cidade foi muito fácil, porque entenderam perfeitamente o que nós estávamos fazendo. O fato de nossa equipe ser pequena também deu um aspecto familiar à produção.
Você sempre quis ter uma atriz experiente para o papel principal da professora?
María Aparicio: Como este é o meu primeiro filme, eu não tinha a consciência do trabalho de atuação anteriormente. Por isso foi muito importante conhecer Eva, que ela é uma grande atriz de Córdoba. Não são todos os atores que estão dispostos a trabalhar sem um roteiro ou sem estar em uma situação controlada. Eva tem essa capacidade. Ela conseguiu se misturar às pessoas e isso foi muito importante para o filme. Foi o meu primeiro filme, eu tinha 22 anos e nem a conhecia, mas ela foi muito generosa comigo e com o filme.
O quanto os moradores e as crianças de Puerto Pirámides puderam trazer de suas próprias experiências pessoais para o filme?
María Aparicio: Eles contam as histórias deles. Nós não intervimos nas coisas que eles queriam dizer. Conversamos muito com as crianças sobre como elas queriam ser filmadas. Por exemplo, Enzo e o irmão queriam tocar guitarra e há uma cena em que eles aparecem tocando guitarra. Luna queria ser filmada dentro de sua casa com seu gato. Há a cena Maxi vende pasteis para o povoado. Na vida real, todos eles fazem as coisas que fazem no filme. Eles queriam aparecer do jeito que são. Nós tínhamos pensado em fazer certas cenas com eles, mas eles propuseram várias coisas, então nós adaptamos as nossas próprias propostas e o filme.
Como as pessoas reagiram quando viram as próprias histórias na tela pela primeira vez?
María Aparicio: Foi lindo porque eles foram os primeiros a verem o filme. Nós terminamos o filme, viajamos para Puerto Pirámides e organizamos uma pequena exibição. Eles ficaram muito gratos por termos feito o filme. Por exemplo, você se lembra do poema? Ninguém sabia que aquela mulher escrevia poemas, só descobriram isso quando ela recita no filme. Todos aplaudiram a cena porque viram a si mesmos como espectadores de suas histórias.
Como tem sido a reação do público fora do país?
María Aparicio: O Brasil é o primeiro lugar no qual o filme é exibido fora da Argentina, é o primeiro público estrangeiro a ver o filme. Eu não sabia qual seria a reação porque o filme tem algo de muito argentino, muito regional, por assim dizer. É claro que existem coisas em comum porque os dois países são da América Latina, mas não sabia como seria. A sessão da Mostra foi ótima, as pessoas me disseram coisas muito bonitas sobre o filme e sobre os temas como a memória, o aspecto democrático. Ver que as pessoas compreenderam o filme foi muito bom. Agora nós iremos para a Espanha mostrar o filme em um festival de lá.
Este é um filme muito contemplativo, com um ritmo próprio. Como foi o trabalho de edição?
María Aparicio: A montagem demorou bastante porque o filme não tem uma cronologia específica. Tínhamos cenas que poderíamos inserir no começo, no final ou antes do final e que funcionariam do mesmo jeito. Isso abriu muitas possibilidades. Em Córdoba, eu trabalho com edição de todos os tipos, não somente para cinema. Trabalhei em um ano com duas versões diferentes do filme. A primeira versão durava duas horas e meia e a segunda durava um pouco menos. Quando chegamos à versão atual, nós mostramos para alguns amigos nossos que trabalham com cinema em Córdoba e partimos dela. Foi aí que eu me dei conta que eu não poderia fazer mais nada. Trabalhei com Martin Sappia, outro montador de Córdoba que encontrou a estrutura correta para o filme, com esta temporalidade. O processo levou quase dois anos.
Em termos de produção, como foram reunidos os recursos necessários para fazer esse filme?
María Aparicio: Foi bem difícil. Natalia, a produtora, como já tinha um vínculo com a Patagônia e com o povoado, foi um elo importante para chegar lá, transportar os equipamentos e a comida. A equipe levou seus próprios equipamentos para a filmagem. Ninguém ganhou dinheiro fazendo esse filme, nem os técnicos nem nós. O processo de pós-produção, de edição de som e imagem também foi longo e custoso. Aos poucos, fomos fazendo o filme, conseguindo o dinheiro necessário, mas foi uma produção bem pequena, uma equipe de duas ou três pessoas.
Como você enxerga o filme dentro do cenário do cinema argentino? Existem novas oportunidades para filmes pequenos?
María Aparicio: O cinema argentino é muito diversificado. Produzimos filmes de todos os tipos e tamanhos. Creio que há um problema de distribuição, de como fazer com que os filmes sejam exibidos. Nesse sentido, os festivais me parecem ser uma ferramenta muito boa porque os filmes podem chegar a outros lugares do mundo. O primeiro festival em que mostramos o filme foi o Bafici, o festival de Buenos Aires e a partir disso, conseguimos levar o filme para 100 províncias e cidades da Argentina. Para nós, com um filme pequeno, é muita coisa. Nunca imaginamos que exibiríamos o nosso filme em São Paulo. Eu acho que falta muito chão para que os nossos filmes cheguem a todos os lugares, mas estamos caminhando. Certamente esses filmes pequenos não serão os filmes do Ricardo Darín.
Mas esta também não é a intenção, imagino.
María Aparicio: Não, e é por isso que existem espaços alternativos, que podem não ser importantes para grandes produções, mas que são muito valiosos para os filmes pequenos. Em Salta, Mendoza, Rosário, General Pico, vários lugares da Argentina, temos pouco espaço. Assim, precisamos seguir trabalhando para que os filmes continuem chegando a públicos cada vez mais diversificados. Os festivais também são um pouco assim, um círculo fechado de cineastas e de pessoas vinculadas ao cinema. Então, o grande objetivo é tentar transcender esse público majoritariamente ligado ao cinema. Mas ontem exibimos As Ruas no Espaço Itaú de Cinema aqui e é incrível ver que as pessoas de São Paulo estão vendo o nosso trabalho. Os festivais nos ajudam muito nesse sentido. Aos poucos chegaremos lá.