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    Festival do Rio 2016: Ocupar é resistir em Era o Hotel Cambridge, novo filme de Eliane Caffé

    A diretora e os atores Carmen Silva e José Dumont falam sobre o documentário ficcional (ou a ficção documental) que grita "Somos todos refugiados".

    Eram Os Devaneios de Lourenço Príncipe*. Era Um Passo Para Ir*¹. Era o Hotel Cambridge. Primeiro filme de Eliane Caffé em sete anos, o longa mais explicitamente panfletário da Première Brasil do Festival do Rio 2016 mostra a imprevisível rotina dos moradores da ocupação da Frente de Luta por Moradia no prédio de 15 andares que entre 1951 e 2002 sediou um dos mais luxuosos hotéis da capital de São Paulo. Contundente na defesa das ocupações, a produção mixa ficção e documentário de forma homogênea, retratando questões fundamentais de nosso tempo como crise migratória, xenofobia, capitalismo, truculência policial, ausência de políticas públicas e desassistência social com o auxílio de gêneros clássicos da sétima arte como romance, comédia, drama, musical, suspense e até mesmo aventura (haja adrenalina na hora da "festa").

    "Com a ideia de fazer um filme que fosse o confronto entre refugiados e brasileiros, eu tinha que encontrar um universo em que isso acontecesse. Aí surgiu a ideia da ocupação, que é onde de fato eles caem quando chegam. Eles não têm opção, não existem albergues suficientes. A partir daí tudo foi crescendo, a partir da pesquisa e da convivência dentro do movimento", contou ao AdoroCinema a diretora.

    Cambridge tem sua maior força em Carmen Silva, a carismática e firme líder do MSTC, Movimento Sem-Teto do Centro de São Paulo. Com experiências anteriores em obras como Dia de Festa, de Toni Venturi, ela disse ao AdoroCinema que não sentiu-se tímida ao descobrir que seria a protagonista ("é fácil interpretar a si mesma"). Responsável pela frase "artista não quer nada", um dos momentos mais curiosos da trama, ela explicou que o projeto foi abraçado pelos sem-teto por seu caráter colaborativo:

    - Quando a Eliane veio, junto com a Escola da Cidade [alunos de arquitetura fizeram uma imersão de seis meses na ocupação e reorganizaram e otimizaram os espaços do prédio, de forma que os cenários da direção de arte fossem mantidos e utilizados da melhor maneira possível pelos moradores], nós vimos com desconfiança, pois já tínhamos passado por experiências no estilo 'veio, fez, foi embora' e não queríamos mais isso. Mas aí ela foi construindo uma relação e fomos vendo os coletivos, as oficinas, toda a preparação do filme... O interessante é que não passou, tudo deu continuidade. O interessante foi a construção e a aproximação, isso foi o que deu certo.

    Nem todos os moradores já viram o longa, mas isso deve ser resolvido nas próximas semanas, na Mostra São Paulo. Apesar do resultado das eleições municipais ("A tendência é piorar, mas sempre fomos movimento. Sempre resistimos com partido de esquerda ou direita, essa é nossa vida"), Carmen declarou acreditar na força do filme e no potencial transformador da arte, mesma opinião de José Dumont – que, junto com Suely Franco e Paulo Américo, compõe o elenco profissional:

    - No mínimo ela [a arte] tem que ser útil. A diferença entre Eliane Caffé e uma Leni Riefenstahl é muito grande. [...] Esse filme vale a pena ter feito. Podemos afirmar que fizemos o melhor possível para aqueles que precisam. As pessoas não têm onde morar, onde viver. País é coisa abstrata, casa é coisa abstrata. O Cambridge é o único país que aquele povo tem. [...] Vai ter muita gente esculhambando, mas vai ter também muita gente que vai gostar e o que interessa são esses que vão abrir os olhos. Os contra a gente já sabe que existem. [...] Se a gente pega uma casa como essa [o Festival do Rio], com a força que tem no mundo, que vai ressoar, e faz qualquer coisa, não tem sentido. Para vir para cá falar de besteira, melhor não vir. Fica em casa com sériezinha, filmezinho, isso aí não falta. Aqui não, aqui é sério.

    Dumont, ator de três dos quatro longas de Caffé – incluindo Narradores de Javé, grande vencedor do Festival em 2003 –, interpreta o poético agitador cultural do prédio e não viu desafio em contracenar com amadores. "Todos somos atores na vida", ele afirmou. "Eles vivenciam aquilo direto, têm muito mais experiência. A gente [profissional] que trabalhou muito para ficar parecido, ter a naturalidade deles, pois eles tiraram de letra".

    Era o Hotel Cambridge ficou cerca de um ano na sala de montagem por conta do aspecto livre de seu desenvolvimento. Os refugiados, como Isam Ahmad Issa – palestino sobrevivente de sete guerras –, participaram de oficinas de composição de personagem e as situações eram explicadas aos moradores/atores antes de cada grito de "ação". Como fatos novos surgiam a cada dia de filmagem, provou-se impossível seguir um roteiro. "Isso que vocês viram é o que eu vivo no dia a dia", declarou Carmen. "Isso" é luta. Como ela diz no filme e fez questão de repetir na entrevista, "quem sabe mais, luta melhor" e "quem não luta está morto".

    Era o Hotel Cambridge será lançado em janeiro, pela Vitrine Filmes. Leia a crítica.

    * e *¹ = títulos anteriores do projeto

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