Um dos melhores filmes no 44º Festival de Gramado foi o suspense nacional O Silêncio do Céu, dirigido por Marco Dutra. Adaptado do romance "Era El Cielo", o filme traz a história de Diana (Carolina Dieckmann), uma mulher estuprada em sua própria casa. O marido Mario (Leonardo Sbaraglia) flagra a cena, mas não consegue impedi-la. A partir deste momento, ambos vivem no silêncio: ela não fala para ninguém da agressão que sofreu, nem ele admite sua impotência diante da situação.
O conteúdo é pesado, mas fascinante pelas atitudes controversas que os personagens passam a tomar. Nós conversamos Marco Dutra (Trabalhar Cansa, Quando Eu Era Vivo) sobre esse novo trabalho. Ele explicou as dificuldades de adaptar o livro e filmar a cena de estupro, e justificou suas escolhas de elenco.
O Silêncio do Céu estreia dia 22 de setembro nos cinemas.
Muitas pessoas costumam exigir das adaptações de livros que sejam fiéis ao original. Qual seria a responsabilidade de O Silêncio do Céu em relação ao material de origem?
Marco Dutra: Neste filme eu estou muito protegido, porque a adaptação foi feita pelo próprio Sérgio Bizzio [autor do livro] e pela Lucía Puenzo, que é casada com ele, grande diretora, roteirista e tal. O Sérgio Bizzio também já fez roteiros, inclusive dirigiu um filme.
Foi um processo engraçado, porque li o roteiro antes de ler o livro. Fui convidado pelo Rodrigo [Teixeira, produtor] com uma versão do roteiro pronta, e falei: “É óbvio que quero ler esse livro”. Eles foram muito espertos na adaptação porque é um livro complexo de estrutura e de tom. É um livro em primeira pessoa, ou seja, muito caudaloso, de fluxo de consciência, o que já é uma dificuldade. O personagem fica revivendo experiências do casal, experiências que ele teve com outras mulheres enquanto estavam separados.
Existe muita memória no filme, e o roteiro, por tradição, tem uma linguagem concisa, você tem que ir no “x” da questão. A proposta de adaptação deles foi de começar como o livro começa, ou seja, com o estupro, e deixar isso ser o assunto central do filme ao invés da memória. Por isso, a estrutura foi ideia deles. Já estava no roteiro de cara, depois fui melhorando o roteiro com eles.
O roteirista brasileiro Caetano Gotardo entrou mais tarde no projeto. O que ele trouxe ao roteiro preexistente?
Marco Dutra: O Caetano entrou em parte porque a Lucia e o Sergio não podiam continuar, por uma questão de agenda, e também porque era uma fase quando surgiu a ideia de trazer o filme para São Paulo. Queria um roteirista parceiro meu, brasileiro, para fazer essa adaptação para São Paulo.
Depois mudamos de ideia, decidimos manter em espanhol e em Montevidéu. O roteiro original era em Buenos Aires, porque o livro é argentino. A grande mudança nesse primeiro trabalho do Caetano foi com personagem da Diana, para que ela fosse brasileira e trabalhasse com moda. O personagem dela também era um pouco diferente no livro porque ela era escritora.
Um problema que eu considerava [na primeira versão do roteiro] era o final um pouco redentor. Era uma situação em que não era possível ter redenção, eu queria trabalhar o trágico no filme. Então, chegamos num final muito diferente do original. Isso foi uma grande conquista na reescrita.
O aspecto mais interessante deste suspense está nas suas escolhas entre o que mostrar e o que esconder.
Marco Dutra: É parte do prazer desse tipo de filme. O suspense é importante para determinar o que o personagem vai fazer e se você aprova ou não aprova a decisão dele. Isso tem a ver com o gênero cinematográfico, que não é de exposição total. Ainda mais um filme sobre um ocultamento, um personagem que não está falando sobre o que está sentindo, é muito importante o que não se vê.
Uma cena muito forte no filme neste sentido é quando o Mario se deita na cama, a Carolina está deitada e ele vai com a mão nela. Você não vê se ele chega a tocar nela ou não. Ele fica com a mão meio que pairando ali e você também não sabe se ela está acordada ou não. A gente discutiu muito essa cena: como eu ia filmar, se eu ia filmar mostrando o rosto dela. Ela podia estar com os olhos abertos no escuro e ele não ver, mas aí eu achei muito mais interessante a gente não ver se ela está acordada ou não.
Então, é isso o que você fala: do que a gente vê, do que a gente não vê, de modo a criar tensão dependendo de que ponto de vista você está, porque o filme joga com pontos de vista também.
A cena de estupro é uma cena difícil de assistir, e imagino que tenha sido difícil de criar também.
Marco Dutra: Eu fui ver algumas cenas que eu tinha na minha memória, como Sob o Domínio do Medo, do Sam Peckinpah, que tem uma cena de estupro muito famosa, e revi Irreversível. É muito difícil filmar cena de estupro, porque cria uma dualidade entre a violência e o prazer, e não queria fazer isso no filme, eu queria que fosse pura violência. Eu queria filmar essa cena não como uma cena de sexo, mas como uma cena de pura violência. É isso o que a gente tem que entender para a gente não fetichizar nada.
Por isso, existem dois pontos de vista: um é a subjetividade da Diana e o outro é a objetividade do olhar do Mario. Então, tem dois lugares em que essa câmera está: um é com Diana, dentro de casa, e o outro é do lado de fora. Quando estamos com o Mario, a câmera nunca entra na casa. Com a Diana, a câmera funciona como uma extensão do corpo dela.
Foi essencial o momento de construção junto com a Carolina, em que ela tenta sair do corpo e não consegue. A gente vai para um ponto de vista do teto e da sombra do teto, e aí a gente volta, porque ela não consegue sair. Não é choro, e sim uma sensação de afogamento.
Você tem feito escolhas curiosas de elenco nos seus filmes. Em Quando Eu Era Vivo, a Sandy e o Antônio Fagundes estavam em papéis muito diferentes do que costumam interpretar. A Carolina Dieckmann também foi uma escolha ousada para Diana.
Marco Dutra: O processo de elenco foi bem suave nesse filme. O Rodrigo Teixeira gosta muito de discutir elenco. Ele já estava trabalhando com o Leonardo, que é um ator que eu já conhecia de Plata Quemada, Relatos Selvagens, enfim. Então o Leo veio a São Paulo para a gente se conhecer e foi uma decisão rápida: quando a gente se conheceu, a gente disse “Vamos fazer, vai dar certo”.
Com Carolina, fomos ao Rio conversar com ela. Eu queria conhecê-la, para ver se era a Diana de fato, e ela também queria testar a gente, na verdade. O toque certeiro foi quando o Leonardo e a Carolina se encontraram, porque eles têm um sotaque muito diferente, e a primeira dúvida era: como é que eles vão se entrosar? E se entrosaram. Conseguiam dialogar muito rápido, mesmo sendo outra língua, mesmo sendo outra escola.
No caso da Mirella Pascual, fui conhecê-la em Montevidéu e ela adorou o roteiro. O Álvaro Armand Ugón, que faz o Andrés, eu conheci no Uruguai também. Fiz um teste, mas foi um teste quase ensaio, na verdade, porque eu já tinha visto uma peça dele no teatro e gostei muito. Na verdade, não gosto muito de fazer testes, acho que os atores também não gostam. O Chino Darín foi conversa também. Foi sentar e falar, porque ele foi a primeira sugestão que me fizeram para o Néstor. Queria que ele raspasse o cabelo, porque no roteiro ele era descrito como “rapado”, e ele aceitou na hora. Então, já me ganhou de cara. Ele é um ator incrível.