A verossimilhança é um tema bastante discutido, até polêmico, no cinema. De Alfred Hitchcock, que zombava de quem o criticava falseando ainda mais a "realidade" de seus filmes, a Christopher Nolan, questionado pelo tom realista de algo essencialmente fantasioso como o Batman, o assunto vai e volta, em direções distintas, analisado como algo a ser adotado (ou não) segundo uma regra. Tremenda besteira.
O grande problema acontece quando discurso e imagem conflitam involuntariamente, confundindo o espectador. Como é o caso do irregular filme mexicano Epitafio.
Em 1519, três homens do exército do conquistador espanhol Hernán Cortés rumam ao grande vulcão Popocatepetl, no México, em busca de enxofre (ingrediente necessário para a produção de pólvora negra, por exemplo). O enérgico Diego de Ordaz (Xabier Coronado) conduz a expedição com apenas dois comandados: o fiel Gonzalo (Martín Román) e o frágil Pedrito (Carlos Triviño). A viagem irá se mostrando um caminho sem volta, com questões como coragem, determinação, fé e religião fazendo jus ao status de épico minimalista do filme.
Rubén Imaz e Yulene Olaizola têm, assim, um material interessantíssimo em mãos. Em vez de grandes batalhas, os desbravadores têm como principal desafio a natureza, representada na barreira física da montanha e no frio rigoroso que marcará a subida, e em suas crenças próprias (em si e no metafísico). A missão debilita Gonzalo e Pedrito, mas revela uma força estranha em Diego. Sua valentia se confunde à loucura, e revela a intenção dos realizadores: desmistificar a imagem de seus heróis. Quando Gonzalo se questiona sobre os povos que massacrou, o cristão fervoroso Diego atribui seus feitos a Deus. A sacralização de atrocidades — uma marca na História das Américas.
Diego de Ordaz se expressa em tom declamatório. Sua afetação revela a falsidade de seu discurso. Se não um hipócrita, um insano. O recado é bem dado. Mas o truque se torna problemático pois o que se diz não representa o que se vê. Pedrito sente dor nos pés, que estão intactos. Os calçados e as roupas deles são limpos e novos, com detalhes em metal brilhosos. Tão perfeitos como as mãos dos personagens, sem machucados e pouco sujas. Se a montanha fosse substituída por um tablado, não faria a menor diferença.
Os personagens de Epitáfio, portanto, nunca convencem como reais conquistadores; estão mais para pessoas bem vestidas para uma festa à fantasia. Como saídos de Monty Python Em Busca do Cálice Sagrado. Um detalhe que, num filme de enquadramentos fechados e marcado pela monotonia (a escalada é íngreme, o roteiro é plano), faz uma baita diferença. Desliga o espectador da história em que nada se parece crível. Assim, a impressão que se tem é do subaproveitamento de uma premissa curiosa, bem intencionada, que teria ganhado tanto mais se explorada com mais cuidado e verossimilhança.
Cinema radical em formato convencional
O segundo dia da mostra competitiva de curtas-metragens foi bem interessante. Num conflito de propostas estéticas, vitória do cinema convencional. Quer dizer, no formato, pois a mensagem do documentário USP 7% se baseia numa mensagem positivamente radical.
USP 7% trata das desigualdades raciais que assolam a maior universidade do país. Causa e consequência da ausência de negros na USP, sintomática sobre o racismo velado no Brasil, é comentada por educadores, alunos e vestibulandos que não só enxergam, como sentem na pele os efeitos da discriminação. Um filme importante, conduzido com a devida sobriedade e contundência.
Quando É Lá Fora abriu a noite com uma proposta ousada. O curta mineiro é uma ficção científica sobre a alienação do ser humano num mundo distópico, onde todos andam, se vestem e, logo, pensam igual. Um filme experimental, de premissa ambiciosa e execução simples - justificável pelo tamanho do pequenino projeto, realizado por jovens estudantes de cinema.
O Teto Sobre Nós apresenta um cinema mais maduro em sua proposta semidocumental, sobre a constante desocupação de um prédio abandonado em Porto Alegre. O filme é sensível, mas nota-se uma estética pretensamente diferenciada que se iguala à de muitos jovens cineastas.
Monstro, declaração de amor de Breno Baptista a uma grande paixão, é interessante. Sua narrativa quase predominantemente composta de fotografias do ex-namorado é bem montada e contextualizada em sua narração (nem sempre tão compreensível, por causa qualidade da gravação e/ou do seu tom de voz). Uma poesia suja - o que é um baita elogio.
Hoje no Cine Ceará 2016
Neste sábado (18), o terceiro dia de Cine Ceará 2016 contará com a exibição de apenas um filme da mostra competitiva de curtas: Janaina Overdrive, de Mozart Freire. Na competição de longas, por sua vez, serão dois: o brasileiro Maresia, de Marcos Guttmann, e o panamenho Salsipuedes, de Ricardo Aguilar e Manolito Rodríguez.