A última noite de sessões da mostra competitiva do 39º Festival Guarnicê de Cinema, na sexta-feira (10), foi também a mais instigante de todas até aqui. O alto nível de qualidade fílmica e narrativa dos curtas-metragens e o filme-ensaio Ralé, de Helena Ignez, marcaram as projeções. No geral, os curtas e o longa exibidos foram os mais aplaudidos pelo público desta edição do festival.
Chamada ao palco para apresentar Ralé, Ignez agradeceu a gentileza da produção do festival maranhense e salientou suas raízes no nordeste do Brasil. "Somos primos. O filme é paulista, mas eu sou nordestina, eu sou de Salvador".
Helena, ícone do cinema marginal graças a filmes como Copacabana Mon Amour, A Mulher de Todos e O Bandido da Luz Vermelha, revisita a transgressão que marcou a produtora Belair nos anos 70 em Ralé. "É um filme sobre minorias e sobre inclusão, um filme político. É um filme que fala de um monte de coisas. É um filme dentro de um filme e é um filme de amor", explicou a cineasta.
A diretora também dedidicou a sessão do dia aos curta-metragistas, "que estão fazendo cinema do presente e do futuro", e à memória do "mestre extraordinário, fora de série" Rogério Sganzerla, diretor com quem foi casada até a morte dele, no ano de 2004.
Os curtas-metragens
Incorporando um dos acontecimentos recentes mais vivos na memória coletiva nacional, o curta Tem Alguém Feliz em Algum Lugar (RJ) se passa no dia em que o Brasil foi eliminado da Copa do Mundo de 2014, quando sofreu a humilhante goleada de 7 a 1 para a Alemanha. Nesse dia de drama coletivo, um drama particular se estabelece na relação entre o deficiente auditivo Miguel e com a reservada Elisa, condômina do prédio em que o rapaz trabalhava até ser demitido na manhã do fatídico dia.
Ao longo dos 18 minutos de projeção, o curta de Álvaro e Mário Furloni sublinha diversos temas de forma sensível e envolvente, como a relação entre classes sociais distintas, a persistência da memória e o envelhecimento. Assim como no curta-metragem Tarântula, que também faz parte da mostra competitiva e foi exibido na terça (07), a maneira como a história se desenrola e o fluxo das cenas são tão bons que a vontade é de ver os filmes transformados em longas.
O curta mineiro Rapsódia Para Um Homem Negro canaliza um discurso robusto sobre opressão racial no Brasil com metáforas imagéticas igualmente potentes. Na trama, em que a ancestralidade africana e suas representações são colocadas em primeiro plano, o jovem Odé tenta lidar com a morte do seu irmão, Luiz, que foi espancado pela polícia.
No meio da história, uma pausa. Uma cartela preta com versos do rapper Killer Mike (do duo Run The Jewels), ativista do movimento Black Lives Matter, ganha a tela, situando Ferguson, Baltimore e a periferia brasileira como parte da mesma quebrada.
Em seu trabalho, o diretor Gabriel Martins mostra a habilidade de criar metáforas alegorias visuais. Em determinado momento, uma câmera inclinada filma um edifício, como se este estivesse prestes a cair. Ao fundo, escuta-se som do que parecer ser uma confusão desencadeada num protesto. É como se o cineasta apontasse o dedo para uma sociedade insustentável, em que o racismo explícito e velado é varrido para debaixo do tapete.
A ficção dá espaço para um breve, mas arrepiante, momento documental, em que o diretor filma o rosto de mulheres, homens e famílias negras de Minas Gerais, conferindo a essas pessoas visibilidade e humanidade que muitas vezes lhe é negada pela polícia e pelo Estado.
Na parte final, a única ressalva é a presença de um flashback que mostra uma conversa entre Odé e Luiz, que, extensa demais, desequilibra o bom ritmo do curta até então. No desfecho, o drama dá lugar para uma ação de qualidade quase hollywoodiana (no melhor dos sentidos).
O adjetivo genial é bastante banalizado, mas o curta Quintal (MG) é um trabalho que, sem nenhuma hesitação, merece muito ser chamado assim. Assim como no ótimo longa-metragem Ela Volta na Quinta, o diretor André Novais Oliveira faz das limitações de orçamento a sua glória. Mesmo sem se amparar em cenários pomposos, efeitos especiais de ponta ou mesmo atores "profissionais", vemos uma obra coesa em seu afiado humor fantástico e nonsense. Trata-se de uma comédia engraçadíssima que nos permite dizer, tecnicamente, que, mesmo em menor escala, o gênero ainda pode respirar e encontrar novos caminhos no Brasil, para longe das limitadas globochanchadas de sempre.
Durante a projeção, as gargalhadas foram constantes. A obra tem potencial para encontrar uma ressonância muito grande com o público em geral, indo além do público de cinema de arte que Oliveira conquistou em Ela Volta na Quinta. O humor absurdista de Quintal dialoga com as situações surreais presentes no tipo de humor que constuma fazer sucesso em séries animadas com Os Simpsons.
Assim como em seu longa-metragem mais famoso, André coloca seus pais para atuar, retratando um dia bem insano na rotina deles, envolvendo pornografia e um portal interdimensional, mas é melhor não entrar em maiores detalhes pois descrever aqui as piadas do filme seria um desserviço.
Depois de produções tão boas, o maranhense O Assalto, outra comédia, encerrou a mostra competitiva. O filme até traz um bom argumento, mas a execução não engrena, ficando muito aquém do ótimo e multipremiado Acalanto, do mesmo diretor, Arturo Saboia.
Ralé
Adaptando de forma livre e não convencional o texto do dramaturgo e romancista Maxim Gorki, Ralé foi a forma da diretora Helena Ignez de mostrar que os ideias de transgressão do cinema marginal ainda estão vivos e pulsantes.
Na trama, multifacetada, Ney Matogrosso interpreta o Barão, um homem erudito e versado em misticismos que é dono de uma grande propriedade rural idílica. Nessa fazenda, ele recebe seu filho e planeja se casar com o namorado, o dançarino Marcelo. No mesmo lugar, uma equipe de filmagens roda A Exibicionista, um filme inserido em Ralé.
Ao priorizar a liberdade em detrimento da coesão, o filme quebra a quarta parede, usa da metalinguagem e discute conceitos sem medos ou pudores, lembrando alguns filmes mais recentes de Jean-Luc Goddard, como Adeus à Linguagem.
O duração reduzida, de apenas 72 minutos, ajuda a condensar esse caldeirão de ideias libertárias de forma que as constantes mudanças de foco narrativo não chegam a cansar o espectador. Se fosse mais longo, certamente seria afetado negativamente.
Ralé posiciona a vagina no epicentro do mundo e conta com uma cena de masturbação feminina que mostra o quão diferente é quando uma mulher filma a nudez de uma outra mulher, longe do male gaze. Entretanto, por não haver contrapontos ou conflitos ou embates no enredo, as bandeira levantadas, por mais relevantes que sejam, em alguns momentos ficam muito panfletárias.
A autorreferência é outra marca de Ralé: Ignez recobra no filme a debochada Sônia Silk de Copacabana Mon Amour e a espelha na personagem de Simone Spoladore, maior destaque do elenco.
Com um tom tão alegre e solar, Ignez já definiu o filme como "a Sessão da Tarde de um mundo melhor". Por conta disso, o arco dramático dedicado ao personagem de Zé Celso destoa bastante do resto do filme, prejudicando o equilbrio do discurso.
Por ter como objetivo celebrar minorias, resgatar uma ancestralidade brasileira e dar espaço aos oprimidos, uma coisa que não passa despercebida é o fato de Ralé não ter nenhuma mulher negra com relevância na trama.