O estilo hermético e existencialista de O Signo das Tetas e a exuberante plasticidade de Das Águas Que Passam foram os pontos altos do segundo dia do 69º Festival Guarnicê de Cinema.
O Teatro da Cidade de São Luis recebeu na noite de terça-feira (06) as primeiras sessões de filmes que integram a mostra competitiva do festival maranhense: quatro curtas e um longa-metragem.
Logo de início, vale destacar que a qualidade técnica do projetor do Teatro da Cidade foi superior à apresentada na noite anterior, no Teatro Artur Azevedo, na sessão especial de A Frente Fria Que a Chuva Traz, que abriu o evento.
Curtas-metragens
O primeiro curta exibido foi a produção paranaense Tereza, de Mauricio Baggio, que acompanha as reflexões de um presidiário sobre o valor da liberdade. Em questões técnicas, observa-se um trabalho bem apurado, com uma boa trilha sonora composta por Jaime Zenamon, uma montagem afiada e uma competente fotografia nas cenas noturnas. Entretanto, os diálogos pouco espontâneos e uma reviravolta menos impactante do que se propõe a ser fazem Tereza deixar muito a desejar.
Em seguida, foi apresentado o belíssimo documentário capixaba Das Águas Que Passam, que expõe um olhar fascinante sobre a rotina de alguns pescadores na Vila Regência, no litoral do Espírito Santo. O trabalho examina o elo que se estabelece entre a natureza e a comunidade ao seu redor com um apuro estético atraente, fruto de um exercício cinematográfico robusto e poético assinado pelo diretor Diego Zon.
O documentário não traz entrevistas, nem depoimentos. Muito pouco é dito com palavras, o que reforça a qualidade narrativa das imagens apresentadas e as virtudes do ótimo trabalho de mixagem de som que proporciona uma experiência sensorial ao espectador, mesclando timbres do vento e do mar.
É uma pena que o filme, rodado nove meses antes do desastre ambiental em Mariana, sirva como uma espécie de homenagem póstuma para a beleza natura do Rio Doce e de todas as regiões afetadas pela tragédia.
Com Silvio Guindane (Ponte Aérea, Metanoia) e Keli Freitas no elenco, o curta de drama com leves toques de comédia 32 Dentes foi a única produção exibida na terça-feira que conseguiu fazer a plateia rir, graças a um bem humorado e quase tarantinesco diálogo sobre a arcada dentária da Xuxa. Sobriamente sensível, o filme carioca aborda a solidão afetiva causada pelo luto de maneira inteligente, com escolhas criativas para representar a vontade de se reconectar com alguém que já se foi.
O curta maranhense Macapá foi o filme com o formato mais peculiar da noite (e olha que se trata de uma noite em que um filme de Frederico Machado foi exibido). Com apenas uma sequência sem cortes de sete minutos, com a câmera praticamente estática, a obra nascida por acidente borra a linha entre ficção e documentário, pois é uma espécie de making of de outro filme, o longa Cine Vitória (ainda inédito). Na cena, o diretor Marcos Ponts dirige sua tia, que não é uma atriz profissional, e tenta fazê-la chorar aplicando o Sistema Stanislavski, apelando para a memória afetiva da mulher.
O Signo das Tetas
"Minha primeira lembrança é das tetas de minha mãe, grandes e volumosas, oferecendo-se a mim", confessa o édipico homem que observa a mãe tomar banho e protagoniza a trama de O Signo das Tetas, de Frederico Machado, diretor maranhense responsável por O Exercício do Caos, multipremiado no Festival Guarnicê de 2014.
Desde seu primeiro curta, o excelente Litania da Velha (1997), Machado se propõe a expor em seus trabalhos cinematográficos uma linguagem autoral muito particular e lança sua lente para um Maranhão marginalizado e profundo.
O Signo das Tetas é o segundo filme da chamada trilogia dantesca assinada por Frederico. O primeiro foi o já citado O Exercício do Caos e o próximo será As Órbitas da Água, ainda não apresentado. Todos esses trabalhos foram desenvolvidos para exaltar de forma visual a poesia de Nauro Machado (1935 - 2015), pai do cineasta (que faz uma ponta no filme).
O motor da narrativa do filme é o personagem de Lauande Aires. Não sabemos o nome de batismo dele, que, da mesma forma, desconhece seus rumos e vaga pelas estradas do Maranhão motivado por uma perene vontade de fugir do que quer que seja. No epicentro de seus problemas está o forte laço que estabeleceu com sua mãe. O seio da matriarca é o que simboliza cuidado, alimento, amor. Tudo que lhe falta no tempo presente. Seus outros dramas não são ditos. Não é possível saber se ele tem ou teve uma esposa, como foi sua relação com o pai, o que já fez da vida ou se tem uma profissão. Machado permite que o público pense nessas lacunas e as preencha.
Oco de alegrias, o homem anônimo busca, sem sorte, saciez no sexo com uma prostituta, na qual, muitas vezes aparenta projetar a própria mãe. A narrativa é transversada por imagens deliriosas do homem sendo amparado por figuras femininas espectrais, em sequências que trazem simbologias sexuais e religiosas.
No filme com formato de road movie, o homem sem nome está em trânsito constante. De carro, a pé, de bicicleta, canoa ou barco, ele vaga por lugares e não-lugares que nada fazem senão amplificar sua sensação de desamparo. Em toda a sua trajetória, o homem anônimo só sorri em raríssimos momentos, como quando observa duas crianças brincando antes de ser tomado pela melancolia. "A gente cresce e vai travando todo."
A câmera de Machado usa diversos planos fechados e planos detalhe para capturar todas as minúcias da boa atuação de Aires, encaminhando o espectador para se encaixar na situação deste homem. No que se refere à forma, o filme segue uma estrutura fragmentada. Machado está mais interessado em apresentar as sensações do protagonista de forma imagética do que se amparar em construções de casualidades.
Com a representação praticamente documental de uma festa popular no interior do Maranhão e uma visão quase onírica das paisagens naturais de seu estado, Machado filma sua terra natal com o esmero de quem filma uma musa inspiradora.
Por trazer poucos diálogos e não mostrar uma história amarrada com início, meio e fim, O Signo das Tetas certamente não é o tipo de filme que será unanimidade entre o grande público, mas esse não é o objetivo do cineasta, certamente. Aqui não há a narrativa clássica amparada na fórmula equilíbrio-desequilíbrio-clímax-equilíbrio.
Vale também ressaltar o ótimo casamento das imagens propostas por Machado com a Sonata para Piano em Lá Maior de Franz Schubert.