Não é exagero dizer que Xavier Dolan é "filho de Cannes". Seu primeiro longa-metragem foi Eu Matei Minha Mãe, rodado quando tinha apenas 19 anos e exibido no festival de 2009. Desde então, outros quatro longas por ele dirigidos passaram pela Croisette. O mais recente deles é Juste la Fin du Monde, exibido neste ano, que lhe rendeu o Grande Prêmio do Júri.
Dias antes da premiação, participamos de uma round table com Dolan. Nela, o diretor pôde falar um pouco sobre como foi a adaptação da peça teatral para o cinema, o trabalho com atores consagrados, a escolha da trilha sonora e a angústia que sente por ter se afastado do trabalho como ator - e de que forma busca minimizar isto durante as filmagens. Confira!
DO TEATRO PARA O CINEMA
Baseado na peça homônima escrita por Jean-Luc Lagarce, Juste la Fin du Monde é a segunda adaptação de um texto do teatro para o cinema feita por Dolan, que já havia tido o mesmo trabalho em Tom na Fazenda. Para o diretor, esta transposição esteve longe de ser um desafio. "Não foi um desafio porque eu decidi que ia manter a teatralidade. Acredito que muita gente tem medo do teatro. Quando as pessoas saem de uma sessão de um filme adaptado de uma peça, você ouve coisas como 'ah, foi um ótimo filme, nem deu para sentir a teatralidade, nem deu para sentir que era uma peça'. Eu não me importo com isso, com parecer ou não com uma peça, porque tinha a consciência de estar embarcando em uma jornada teatral com Jean-Luc Lagarce. A linguagem dele é muito sofisticada e precisa, muito única, e ela foi, antes de mais nada, a razão principal que me fez querer adaptar a peça."
MUDANÇA DE OPINIÃO
Curiosamente, Dolan não gostou nem um pouco da peça escrita por Lagarce quando a conheceu. "Eu precisei de cinco anos para gostar da peça e adivinha só? Eu achei irritante na primeira vez em que a li. Achei que era grosseira, agressiva."
Após tanto tempo, o que mudou para que enfim resolvesse adaptá-la para o cinema? "Eu li novamente com os atores em mente, isso ajudou, mas também notei muitos detalhes que não tinha percebido anteriormente no texto [..] Não importam as palavras que estão sendo ditas porque, no fim das contas, é um grande falatório para dizer tudo, menos o que é realmente importante. E foi isso que me interessou. Porque, ao ler a peça, eu me apaixonei pelas palavras e pela escrita, mas e aqueles pequenos momentos entre essa fala e aquela? Eu sei o que poderia fazer aqui, nesse instante, nesse momento de pausa... aqui pode existir um silêncio, um olhar... Tudo estava na peça quando a li. Ficou claro para mim que seria um filme de atores e que os atores utilizariam as palavras do seu jeito, mas eu não faria concessões, tentaria manter a linguagem do filme exatamente como a da peça, mesmo não sendo esse o ponto mais importante."
FORA DA ZONA DE CONFORTO
"A linguagem da peça é muito anti-cinematográfica. Mas, algumas vezes, nós decidimos fazer filmes que não são tradicionais", afirmou o diretor. "Nesse caso, parece necessário colocar toda a equipe fora da zona de conforto. Para os atores, esse processo foi muito estimulante: 'como direi essa fala?'. Para mim, como ator, eu os ouvia e tudo parecia perfeitamente normal."
ELENCO ESTELAR
Juste la Fin du Monde traz o elenco mais conhecido da carreira de Xavier Dolan: Marion Cotillard, Vincent Cassell, Léa Seydoux e Gaspard Ulliel. "Foi certamente difícil reunir todos, mas nós conseguimos e foi ótimo." O diretor falou também sobre as diferenças de trabalhar com nomes conhecidos em relação aos seus filmes anteriores. "Trabalhar com eles não foi diferente de trabalhar com Anne Dorval ou Suzanne Clèment. Eles estavam muito imersos no trabalho, na precisão dos detalhes, não queriam se repetir, se importavam em construir um papel diferenciado, em atingir uma composição diferente, algo a mais e era exatamente o que estávamos procurando, implacavelmente. Todos tínhamos o mesmo prazer e o mesmo desejo de ir além. Aliás, esse é o sonho de todo diretor. Todo diretor vê um ator ou atriz que admira, como Marion Cotillard, por exemplo. Eu sabia que ela é ótima, fantástica, mas queria que ela fosse incrível, estivesse diferente no meu filme."
VETERANO DE CANNES?
"É engraçado quando você diz que sou um veterano de Cannes. Acho isso muito irônico. Acho que estive aqui várias vezes nos últimos anos, vamos nos ater aos fatos. Ken Loach é um veterano de Cannes. Eu não sou um veterano", afirmou.
ESCOLHA DA TRILHA SONORA
Um dos aspectos mais interessantes de Juste la Fin du Monde é a escolha da trilha sonora, que inclui vários sucessos pop. Uma das canções escolhidas é bem conhecida do público brasileiro, por ter inspirado a popular "Festa no Apê", de Latino. "Ela se chama Dragostea Din Tei, da banda O-zone. Se você quiser ver algo histérico e muito colorido, assista ao videoclipe dessa música. Sabia que precisaria de uma música relacionada com exercícios aeróbicos, então comecei a pesquisar na internet e encontrei um vídeo de exercícios que usa essa canção. Achei que seria uma boa ideia e a escolhi para o filme."
Dolan falou ainda sobre como escolhe as canções de seus novos filmes. "Sempre seleciono as canções quando escrevo o roteiro. As músicas que escolho na pós-produção são aquelas que preciso usar para preencher os silêncios, compor a narrativa. Mas acho que cada vez mais quero ter as canções desde o início do processo. Venho fazendo isso desde Tom na Fazenda. Eu quero colocar canções que façam parte das vidas dos personagens e não canções que vêm das minhas playlists."
VAIAS EM CANNES
Na primeira sessão para a imprensa, Juste la Fin du Monde recebeu aplausos e algumas vaias. O diretor comentou a situação, com direito a uma alfinetada. "É estranho o fato de que um ou dois filmes sejam vaiados por dia aqui. Eu não sei o que é isso. É uma tendência? Creio que estamos em um lugar sério, um lugar para refletir sobre o cinema, sobre a arte de fazer filmes e acho que é o momento de refletirmos sobre o que o ato de fazer cinema se tornou e sobre o que estamos vendo. No entanto, não é possível fazer isso logo na saída do cinema, com pressa."
Questionado se as vaias o desanimam, ele não pensou duas vezes antes de afirmar: "As críticas negativas nunca tiraram a minha confiança no filme."
O SEXTO ATOR
Multitarefa, Xavier Dolan foi também astro principal de seus três primeiros longa-metragens. Mas anda ausente da função já há alguns anos, algo que o atormenta bastante. "Estou em um hiato desde Tom na Fazenda, uma pausa dolorosa."
O diretor busca compensar esta lacuna ao trabalhar com o elenco de seus novos filmes. "Quando tenho a oportunidade de dirigir atores tão bons quanto estes, eu frequentemente atuo junto com eles. Ontem, Marion Cotillard me disse que sou como o sexto ator desse filme, porque estou sempre atuando com eles, fora do enquadramento, dizendo algumas falas, adicionando algumas coisas. Simplesmente não consigo dizer 'ok, corta', virar para o ator e dar instruções como 'será que você consegue fazer essa cena mais triste e não esqueça que estamos no verão, ok?'. Eu não consigo fazer isso. Para mim, precisa ser um processo orgânico e isso acontece naturalmente durante as cenas. Enquanto eles estão atuando, eu estou por perto e, se precisar me enfiar debaixo de uma mesa e me esconder debaixo de uma cadeira para passar minhas ideias para eles, eu farei isso."