Chega aos cinemas esta semana o filme vencedor do festival de Berlim 2016: Fogo no Mar, do italiano Gianfranco Rosi. O documentário apresenta a vida na pequena ilha de Lampedusa, um ponto estratégico para os africanos que fogem do continente rumo à Europa.
Com imagens belíssimas, o cineasta apresenta tanto a vida pacífica dos moradores quanto a travessia perigosa dos imigrantes, que passam semanas dentro de botes apertados, às vezes sem água nem comida, para fugir à falta de oportunidades em seus países.
O AdoroCinema conversou em exclusividade com o diretor Gianfranco Rosi sobre o projeto:
Como você se envolveu com o tema dos refugiados na ilha de Lampedusa?
Gianfranco Rosi: O Istituto Luce, na Itália, me procurou com a ideia de fazer um curta-metragem de dez minutos. Na época, houve uma grande tragédia em Lampedusa, em outubro de 2014, quando 256 pessoas morreram nos arredores da ilha. Foi descoberto então que a ilha de Lampedusa era o ponto de chegada de imigrantes da África Subsaariana há mais de vinte anos. O mundo não tinha ideia do que estava acontecendo naquela região e só naquele verão é que o fenômeno migratório se tornou um assunto muito debatido na Europa. Antes disso, o lugar era apenas uma ilha que recebia imigrantes de braços abertos.
Então, depois de fazer Sacro GRA, me fizeram a proposta de realizar um curta-metragem lá. Quando cheguei à ilha, percebi que não poderia fazer um curta e, então, escrevi uma proposta de longa-metragem com três ou quatro páginas, enviei aos produtores e eles aceitaram. Foi assim que começou a jornada. Começamos a filmar em janeiro de 2015 e terminamos um ano depois, já no início de 2016. Era uma oportunidade que se tornou uma necessidade. Todos os meus filmes anteriores foram impulsionados pela necessidade pessoal de ir aos lugares e começar a filmar: Boatman, Below Sea Level, O Sicario, Quarto 164.
Então, eu recebi uma proposta para realizar Sacro GRA e este também foi realizado via uma proposta. Antes, eu não conseguiria fazer um filme que alguém me pedisse para fazer. Mas agora, eu consigo fazer isso. É preciso encontrar o caminho certo. Foi assim que começamos o projeto, não foi através de uma ideia minha.
Em termos de produção, é impressionante que a câmera esteja em todos os lugares: no barco com os refugiados, no bote salva-vidas, debaixo d'água...
Gianfranco Rosi: Bom, eu sou uma equipe de um homem só! Faço som, câmera, direção, produção... Para mim, a coisa mais importante é o tempo, mais do que qualquer coisa, mais do que o desejo de fazer o filme. Você precisa de tempo para encontrar as pessoas. Todos os meus filmes começam com encontros, encontros com pessoas e eu não saberia fazer um filme que não tivesse um encontro desse tipo, sem conhecer o narrador do meu filme. Então, o tempo é a coisa mais importante.
Fiquei um ano filmando lá e, é claro, as coisas não aconteceram em um dia. Na primeira parte do filme, estávamos em Lampedusa com as pessoas que você viu, na maior parte do tempo com as crianças. Então, passamos a analisar o mundo fora dos limites de Lampedusa, a chegada dos imigrantes e dos botes de resgate. Na segunda parte, passamos um tempo com os refugiados em Lampedusa, onde ficam durante dois ou três dias e, então, eles se mudam para o continente.
O filme é formado por três histórias: a história da ilha, contada através dos olhos dessa criança; a história da chegada dos refugiados nigerianos, e o resgate. A última cena que filmei foi a que vem depois do resgate, para estruturar o filme da maneira mais livre possível. Depois disso, não tínhamos como capturar mais emoções ou imagens, então levamos o filme para a sala de montagem em outubro e começamos a estruturar e montar o filme, porque se tornou muito difícil para mim continuar filmando.
Por que você escolheu não entrevistar os refugiados? Você cria lindas imagens da chegada dos refugiados, mas não há comunicação direta com eles.
Gianfranco Rosi: Eu não costumo fazer entrevistas nos meus filmes. Filmo a interação, a realidade, as pessoas conversando entre si. Foi muito difícil criar uma relação com eles porque ficavam muito pouco tempo na ilha, dois ou três dias e então partiam. Então, eu não tive o tempo necessário para criar uma relação profunda com eles como as relações que criei nos encontros em Lampedusa como o médico, a criança, um lugar onde passei meses conhecendo essas pessoas e descobrindo o ponto certo para colocar a câmera no momento da filmagem.
Acabou sendo sempre assim, exceto na cena onde eles cantam, quando os refugiados da Nigéria chegam à ilha. Este foi um momento que compartilhei com eles, desde o resgate em alto-mar até a chegada à Lampedusa, a chegada ao centro de tratamento. No resto do tempo, foi muito difícil estabelecer uma comunicação, não sabíamos onde colocar a câmera porque não queríamos invadir o mundo deles. Então, esse processo foi muito doloroso, posicionar a câmera sem poder criar uma relação maior com eles porque era impossível dada a grande circulação de pessoas entrando e saindo da ilha.
De certa forma, parece existir um equilíbrio entre a profundidade da exploração da ilha e a narrativa mais leve. Eu tratava da morte, então precisava estruturar esse tema. Não foi uma escolha, tive que ajustar o filme ao estado das coisas. Sendo um documentário, eu não poderia inventar nada.
Por que você escolheu o garoto Samuele? O que você viu nele que poderia representar a totalidade da ilha?
Gianfranco Rosi: É como perguntar a Martin Scorsese por que o taxista de Robert De Niro é o representante de todos os outros taxistas. É preciso escolher alguém. Mas respondendo a pergunta, ele é um bom representante porque ele é uma criança nem muito pequena nem muito grande, ele gosta de passar um tempo consigo mesmo, é selvagem, gosta de ir à floresta e caçar, ele conversa com os pássaros, não tem medo da natureza.
Agora, não conseguiríamos filmá-lo dessa maneira porque ele já é um adolescente. Ele estava em uma idade perfeita entre a infância e a adolescência, no início do processo de formação. Nós o encontramos em um momento perfeito. Foi um verdadeiro milagre encontrar esse menino nessa fase da vida e colocá-lo em frente à câmera sem nunca precisar dizer a ele o que fazer ou dizer. Era natural para ele. Conforme o filmávamos, ficou claro que ele seria o protagonista do filme e cada nova cena nós aprofundávamos nossa relação, cada vez mais ele me apresentava um mundo novo, o mundo dele. Foi um elemento narrativo perfeito para mim.
Fogo no Mar venceu o Urso de Ouro, e no ano passado você ganhou o Leão de Ouro em Veneza. Pensa que esses prêmios podem popularizar os documentários?
Gianfranco Rosi: Acho que não tornam os documentários mais populares para o público em geral, mas ajudam no surgimento de mais cineastas que entendem o documentário como cinema, que não pensam em documentos ou explicações. Não precisamos de mais explicações, não precisamos de mais informação. O documentário precisa retornar às suas raízes, ao tempo em que foi criado, voltar aos tempos de Robert Flaherty, onde há poesia, narrativa, há cinema, um ritmo e interpretação, quando as portas estão se fechando ao invés de estarem se abrindo, quando você transmite mais emoção do que informação. Era isso que o documentário estava fazendo naquela época.
Então, o documentário se tornou cada vez mais explicativo, observador, se tornou mais trágico com Michael Moore. Eu acho que o Michael Moore matou o documentário, de uma certa forma. Existem muitas palavras que podem explicar o documentário, mas para mim "cinema" é a mais importante. É importante criar esse espaço onde se torne possível quebrar a barreira entre documentário e ficção, criar um só mundo, o mundo do cinema, o mundo da narrativa, o mundo de contar uma história, de buscar o personagem.
É importante também ressaltar que não há diferença entre documentário e ficção, apenas a diferença entre verdade e mentira. Nas narrativas, a diferença é entre verdade e mentira e agora não faz mais sentido fazer documentários que saibam de tudo, que nos contem tudo. Temos toda a informação circulando através da Internet, da imprensa, sabemos de tudo o que acontece. Não há mais necessidade em contar histórias tão didáticas.
É curiosa a escolha da canção "Fuocoammare", para além do título. É um tema dançante, feliz, num filme triste.
Gianfranco Rosi: Acho muito importante ver as coisas por vários ângulos diferentes. Esta é uma canção sobre uma tragédia, mas que também carrega muita leveza. Para mim, isso representa o clima da ilha. Esta canção é muito popular em Lampedusa, e as pessoas esquecem que ela foi feita após uma tragédia, o bombardeio britânico que deixou a ilha em chamas. As palavras se perderam, mas a ideia está lá, "Fuoccoamare". A maior parte das pessoas provavelmente nem conhecem a história desta música e eu não queria contar a história no filme porque não era relevante. Então, sempre há um elemento de leveza no filme e um elemento de tragédia. Gosto de trabalhar com esse contraste. É como nas composições de Rossini, meu compositor favorito. Sempre há um elemento de leveza e um elemento de tragédia.