O último dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, será inesquecível para a líder comunitária Maria da Penha Macena. À tarde, ela entrou pela porta da frente da Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro) para receber a medalha de “Mulher Cidadã”, por seu trabalho na Vila Autódromo, região da Zona Oeste da cidade do Rio, onde vive. Pela manhã, Dona Penha, como é conhecida, saiu pela porta dos fundos da própria casa, demolida pela Prefeitura do Rio. Não, não se trata de um filme. Bem... mais ou menos.
A casa de Maria da Penha servia de base para as locações de Mormaço, primeiro longa-metragem solo de Marina Meliande, parceira de Felipe Bragança em premiados filmes como A Fuga da Mulher Gorila e A Alegria. O prédio foi derrubado no segundo dia de filmagens, para dar lugar às obras preparativas para a Olimpíada.
A realidade, claro, adentrou à ficção. “Mormaço se passa no verão mais quente e úmido da história do Rio de Janeiro, num momento pré-olímpico, com a cidade se preparando para os jogos. A personagem principal é Ana, uma defensora pública que trabalha no auxílio a algumas comunidades que estão em processo de remoção”, explica a cineasta.
A ideia, no entanto, veio bem antes do fatídico 8 de março, e surgiu “a partir de um incômodo muito grande que eu tinha de não me sentir parte do processo de mudança dessa cidade. De achar que é um processo arbitrário, sem consulta. É uma sensação de que a cidade nos expulsa um pouco a cada dia”, mesmo com as classes sociais sendo atingidas de forma diferente, ela reconhece.
Guilherme Tostes
A demolição de um corpo. Outra Marina, Provenzzano, assume o papel de Ana, a protagonista, que passa por um drama paralelo: ela também tem que abrir mão da própria moradia, já que o prédio, de classe média, onde mora, está sendo desativado para a construção de um hotel de luxo (qualquer semelhança com a história do empresário Eike Batista, que desativou construções com o mesmo objetivo e hoje está falido, não é mera coincidência).
“É um filme de ficção, com elementos fantásticos”, resume Meliande. Mas... pera aí, fantásticos?! Sim, porque o roteiro, assinado pela diretora e Bragança, ainda dá conta de acrescentar mais uma camada (epitelial?) à trama de Mormaço.
Como se não bastasse, Ana passa a sofrer as mudanças na pele. Literalmente. A advogada desenvolve uma misteriosa – e fictícia – doença. “É um personagem meio Kafka”, conceitua a atriz, se referindo ao autor do clássico “A Metamorfose”. Ela passou por um processo de oito horas de maquiagem para representar o estado em que a condição física toma 50% do corpo da personagem (Marina ainda não havia gravado o momento dos "100%" quando conversou com a redação do AdoroCinema no último 7 de abril. E acredite, esse momento estava previsto para acontecer até o dia 13, data da última diária).
Inicialmente, Provenzzano – que, com 28 anos em breve será vista em A Frente Fria que a Chuva Traz, O Grande Circo Místico e na série Bruna Surfistinha – duvidou que houvesse profissionais do direito tão engajados e com tão pouca idade. Até que foi apresentada a um defensor atuante na própria Vila Autódromo desde os 25 anos. “Como performer você sempre quer falar de questões que estão te atravessando agora”.
Guilherme Tostes
A construção de um lastro. A cena que o AC acompanhou foi filmada no terraço de uma das instalações da Universidade Santa Ursula, em Botafogo, Zona Sul da cidade. Envolvia a ocupação de um prédio, a invasão da polícia, chuva artificial (!) e mais não é recomendado dizer, porque se tratava da sequência final do filme.
O dia que não se esquece, no entanto, é o tal 8 de março – e não só para Dona Penha.
“Eu coloquei os atores para filmarem diante desses acontecimentos. Acho que vai resultar em imagens super fortes, que também ajudam a construir esse imaginário deles, porque as casas vão acabar e o que vai ficar será o filme”, comenta Marina, a diretora.
“Se não fosse a equipe do filme, que ajudou a desmontar móvel, armário, ela [Penha] tinha perdido muita coisa. A guarda municipal tira de qualquer jeito e o que não dá tempo de retirar, é derrubado com tudo”, contextualiza Sandra Souza, moradora da comunidade, uma das principais líderes da resistência da Vila Autódromo que, com um histórico de atriz num passado (bem, segundo ela) remoto, ganhou um papel central na produção.
“Esse dia criou, para todo mundo da equipe, um lastro. Porque a gente viveu, à nossa maneira, o horror daquilo tudo”, completa Marina, a atriz.
“A gente, de alguma forma, também ocupou esse espaço, de um outro jeito, trazendo outras coisas para eles, de construção sobre o discurso do lugar. Então, acho que foi uma troca muito interessante e bonita”, conclui Meliande.
Pedro Gracindo, Diego de Abreu, Analu Prestes e Igor Angelkorte completam o elenco principal do filme, que tem previsão de estreia em 2017.
Guilherme Tostes