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    Exclusivo: O diretor Aly Muritiba discute luto, sexo e vingança em Para Minha Amada Morta

    Após perder a esposa, Fernando descobre que era traído.

    Chega aos cinemas dia 31 de março o filme mais premiado do último festival de Brasília: Para Minha Amada Morta, primeiro longa-metragem dirigido por Aly Muritiba. A história gira em torno de Fernando (Fernando Alves Pinto), homem de classe média que acaba de perder a esposa. Em pleno período de luto, descobre que ela tinha um amante, e torna-se obcecado por este outro homem (Lourinelson Vladimir). Aos poucos, aproxima-se da família do rival, pronto para a possível vingança.

    Durante a Mostra de Tiradentes, o AdoroCinema conversou com o inteligente cineasta, sempre disposto a discorrer sobre os vários sentidos de sua obra. Confira este bate-papo:

    Desde o começo, o Para Minha Amada Morta trabalha com símbolos clássicos do luto, como as fotografias, as roupas. Como escolheu esses símbolos?

    Aly Muritiba: Na verdade, todas as sociedades, em qualquer tempo histórico, de alguma forma experimentaram e experimentam o fenômeno da morte e do luto. O luto faz parte desse processo de purgação, de superar sem esquecer e seguir adiante sem necessariamente deixar para trás a pessoa que se foi. Comecei a perceber que nas mais diversas culturas, os objetos pertencentes ao morto se tornam de alguma maneira amuletos, ou objetos em que você deposita a possibilidade da rememoração, e então as reações pessoais são as mais variadas. Pensando pelo ponto de vista social, de conjunto, comumente o luto passa por objetos, por relíquias que pertenceram ao morto, e então resolvi utilizá-los, primeiro para que o processo do luto fosse vivenciado pelo espectador da mesma maneira que é vivenciado pelo personagem.

    Mas eu tinha um desafio: este é um filme cuja co-protagonista está ausente o filme inteiro. A amada morta, que dá título ao filme, está ausente e eu tinha o desafio de presentificar a ausência. Como torná-la presente, sendo que eu não queria fazer flashbacks ou coisas do gênero? Os subterfúgios encontrados foram justamente o de torná-la presente através das roupas que ela usava, dos sapatos que ela usou, e a partir disso a gente vai conseguindo fazer uma ideia de quem teria sido essa mulher, ou pelo menos de quem teria sido essa mulher na superfície. Através das roupas a gente consegue mensurar qual o padrão de vida, classe social, gosto, então pelo menos superficialmente é possível imaginar quem seria aquela mulher.

    Ao mesmo tempo, você escolhe símbolos que não necessariamente revelam todo seu significado. Por exemplo, existe naquele quarto uma cama de hospital, mas não se sabe muito bem o que aconteceu com ela. Você não queria deixar todas as informações claras, existe um trabalho de imaginação ativa do espectador.

    Aly Muritiba: Acho muito importante dar ao espectador, ou melhor, convidá-lo, a participar do filme construindo coisas. Então eu tento, ao longo do filme, fornecer pistas. A mulher está morta, então imagino que em algum momento, o espectador se pergunte, embora não seja relevante, do que ela morreu? Como ela morreu? Há uma pista lá, há uma cama de hospital que está ao lado da cama do casal. Se uma cama de hospital que está ao lado da cama do casal, você pode inferir que esta mulher pode ter ficado um tempo doente antes de fazer a passagem e, se essa cama ainda está lá, essa passagem é relativamente recente. Se essa cama está ao lado da cama do casal, você pode inferir que esse sujeito ficou cuidando dessa mulher por um tempo, o que torna o amor e a devoção dele por ela muito maior. Mas entregar tudo isso em uma fala, ou em uma cena expositiva para mim é tão fácil e ao mesmo tempo é tão desrespeitoso com o espectador que me recuso a fazer isso. Procuro trabalhar com informações pregressas dessa maneira: colocando pequenos elementos que podem ser identificados e decodificados pelo espectador ou não. Se ele porventura - o espectador mais desatento - não vir aquela cama, ou outro elemento, o filme segue, ele não vai perder o fio da meada da narrativa.

    O fato perverso na condição do protagonista é que ele não tem o direito de ficar bravo com a esposa pela descoberta do adultério, porque ela acabou de morrer.

    Aly Muritiba: Ele não pode revidar e não pode sequer confrontá-la. Supondo que eu construí um personagem que é bastante cerebral, um personagem muito mais dado à reflexão do que aos impulsos, imagino que em uma situação como essa, com a esposa estando em vida, ele preferiria confrontá-la para tentar entender o que aconteceu, ao invés de ter um impulso violento. Mas ele não tem essa possibilidade, e o que mais dói nele, imagino, não é tanto a traição, e sim o que ela diz pro outro no vídeo: "Você é a coisa mais importante que aconteceu na minha vida". Para ele, ela é a coisa mais importante que aconteceu na sua vida, mas ele não é a coisa mais importante que aconteceu na vida dela. Essa inquietude, com essa colocação, gera um desejo de conhecimento, de entendimento. Ele precisa de alguma maneira entender o que aconteceu. 

    Outro elemento importante ao filme é a imagem dentro da imagem, ou seja, a fita de vídeo. Você tem trechos de ato sexual explícito, mas depois ouvimos apenas sons. Como escolheu o que mostrar e o que esconder?

    Aly Muritiba: Eu achava muito mais importante, nesse momento da revelação, que nós estivéssemos com o personagem, com o Fernando, que nós imaginássemos o que ele vê a partir da reação que ele tem, vendo o que ele vê. Imaginei, antes mesmo de filmar, que vendo a transformação física do Fernando, nessa sequência, nós seríamos capazes de nos imaginar naquela situação. Se eu mostrasse o que se passa na fita, você veria aquela mulher, aquela atriz e aquele homem, aquele ator. Optando por não mostrar o que passa na fita, concentrando a imagem no protagonista, você pode imaginar a sua própria mulher, ou o seu próprio homem. Você é o voyeur dessa situação. Imaginei que isso maximizaria a identificação. Mais uma vez, é um convite a que você participe da construção do filme. Essas escolhas de manter algo fora do quadro, não mostrar ou fazer planos muito grandes para que o espectador fique descobrindo os elementos do quadro, são sempre convites para que espectador participe ativamente da trama.

    Espera-se no início um suspense clássico, com a tentativa de assassinato por parte do Fernando, a tentativa de seduzir a esposa... Mas você frustra muitas dessas expectativas. Como foi essa construção?

    Aly Muritiba: Assim como o Fernando, nós temos o privilégio de saber o que aconteceu enquanto aquela família não sabe, mas nós não sabemos o que ele vai fazer no minuto seguinte. Isso gera uma expectativa muito grande e depois a construção das cenas só vai maximizando. Para mim, a violência ou a vingança são questões que contêm uma pulsão de narrativa muito forte. Se pegarmos as narrativas mais clássicas, da "Ilíada" a "Hamlet", chegando hoje nas histórias mais banais cantadas nas letras dos arrochas de Pablo, a gente tem, no fim das contas, essa pulsão de violência e de vingança, de traição e enganação. Portanto, era muito importante para mim criar ou maximizar essa expectativa no espectador e frustrá-la. Porque eu não acredito que a violência seja algo construtor. A violência é uma ferramenta importantíssima de reação de luta social, e eu a defendo no contexto social, mas, se há violência sem uma proposta de construção de algo posterior, ela só gera caos e não leva muito a lugar nenhum.

    Como isso estava posto na história que eu havia criado, era só encontrar no espaço e no tempo formas que pudessem dar visualidade a esses conceitos narrativos que já estão contidos na premissa do próprio filme. Sou um diretor narrativo, faço filmes narrativos e, portanto, para mim, é muito importante que a técnica e a estética estejam intimamente ligadas com a história que está sendo contada. Estética pela estética tem gente que sabe fazer, mas eu não sei, e também não me interessa fazer. O conceito vem sempre antes da realização e o conceito vem sempre antes da conceituação estética da coisa.

    Na relação entre os dois homens, existe por parte do Fernando uma mistura de repulsa e de atração. Repulsa, porque este era o amante de sua esposa, mas atração porque o outro foi capaz de atrair a esposa dele. Tem uma tensão homoerótica entre os dois.

    Aly Muritiba: Tem sim. Tem uma questão de desejo muito posta em todas as relações da casa. A relação do Salvador com todos os elementos ali da casa passa muito pela curiosidade que as pessoas exercem sobre o Fernando, e que ele tem também por essas pessoas, mas passa também pelo desejo de conhecimento de quando você não conhece algo, ou quando você não conhece alguém e tenta de alguma maneira estabelecer um conhecimento sobre essa pessoa. Para isso é preciso que se estabeleça um jogo de sedução, que pode culminar numa relação amorosa e afetiva ou não, mas esse jogo está sempre posto. O Salvador é o espelho do Fernando, o universo de Fernando. Enquanto o Fernando é um sujeito quieto, pequeno, com gestos pequenos, mais cerebral, Salvador é o homem expansivo, suado, que é aquele que construiu a própria casa. Ele é físico, é outro modo de estar no mundo.

    Não acessando muito esse sujeito, eu imagino que há um determinado momento em que o Fernando começa, inconscientemente, tentar sê-lo. Ele é um personagem que está tão perdido que de alguma maneira chega inclusive a querer ocupar o lugar do outro. A gente brincava no set, eventualmente. A gente falava “Vamos mudar o final do filme”, já que muita gente falava que o Fernando tinha que comer a mulher do cara no final. Eu falava que não, que no final o que ia acontecer é que ele ia comer o Salvador! Os atores me diziam que eu estava maluco, mas eu insistia que era sério. Mas há sim essa energia entre os personagens.

    Além da tensão homoerótica, existe a tensão de classes, porque a esposa morta foi buscar um homem de uma classe totalmente diferente, de uma cultura diferente. Como trabalhou a oposição entre classes populares e classe média?

    Aly Muritiba: Eu acho que, muito embora essa questão social no meu filme seja realmente muito subjacente, o filme não é sobre isso, não fala sobre isso. Eu imagino que se o Salvador pertencesse a mesma classe social que Fernando, o choque, e portanto, o desejo e a curiosidade pelo entendimento seriam minimizados, seriam muito menores. Se Ana, que era advogada, estivesse saindo com um advogado, ou um juiz, com alguém de seu meio social, talvez o Fernando compreendesse um pouco mais a situação, mesmo que ficasse magoado. O fato de ela estar saindo com um cara que trabalha em um ferro velho, completamente distinto, gera no Fernando o sentimento de querer conhecer, querer saber o que está acontecendo, saber quem são essas pessoas e, eventualmente, viver como vivem essas pessoas para entender o que acontece.

    Para mim era muito importante que as classes fossem muito distintas, e que houvesse um deslocamento espacial do centro para a periferia - não uma periferia favela, é um subúrbio. Era importante que houvesse a mudança espacial e geográfica na vida do Fernando, e que ele passasse viver em outro lugar, efetivamente numa casa que não é sua, uma casa que é deslocada, improvisada. Há uma experimentação muito tátil por parte do Fernando desse meio social, que ele não faria se não fosse esse evento. De certa maneira, acredito que seja sedutor para ele, e traga certo alento porque ele perde a mulher e depois o filho, ou seja, perde a família. Então ele vai para aquele lugar e uma família o acolhe, é uma coisa de acolhimento.

    A religião para mim é muito importante, porque já trabalhei a questão dos evangélicos em outros filmes meus. Era muito importante porque a religião cristã é baseada na culpa através do desejo. O desejo te leva ao pecado, que, portanto, provoca a culpa que precisa ser purgada, purificada e só então libertadora. A moral judaico-cristã, que rege a nossa sociedade mesmo que não sejamos cristãos, e que rege a nossa lei, é tão arraigada na nossa sociedade que resolvi usá-la a meu favor. Além disso o Salvador é um sujeito que esteve preso, que está tentando se redimir social e talvez espiritualmente, então era muito natural que ele buscasse na comunidade evangélica acolhimento e redenção. São dois homens perdidos buscando redenção em etapas distintas, porque Salvador já está se encontrando e se reconstruindo. Enquanto um está ruindo, o outro está se erguendo. Esses dois sujeitos se encontram e vão se equilibrar apesar do conflito potente que existe entre os dois.

    Como você trabalhou com seus atores para evitar o maniqueísmo que poderia facilmente aparecer na dicotomia traidor/traído?

    Aly Muritiba: Para mim, a construção do modelo de atuação passa muito pela compreensão do texto e da trajetória do personagem dentro da narrativa inteira e da trajetória do personagem dentro de uma sequência específica. Acho que a escolha dos atores foi muito acertada, tive a sorte de encontrar atores certos para aqueles papéis, dispostos a passar por um processo de preparação longa. A gente teve dois meses de preparação para fazer esse filme. O Fernando Alves Pinto, que já fez 200 mil filmes na vida, disse que esta era a primeira vez que ele tinha essa chance de preparação. Durante dois meses, nós ficamos fazendo desde exercícios físicos e corporais para tentar entender como os atores andam, se movem, e quem eles são, até leituras e compreensões das trajetórias dos personagens dentro da narrativa toda.

    Eles são atores que vêm de escolas muito distintas. O Fernando é um ator muito físico, um cara que trabalha muito com meditação e com respiração. Ele não fica criando conceitos ou abstrações, ao passo que a Mayana Neiva é uma atriz que precisa vivenciar o processo e imergir. O Fernando tinha algumas questões que dizem respeito à dieta: ele parou de comer por três semanas, tomando só um suco de cana bem louco. Achei que fosse morrer! Mas para ele era importante passar pelo sofrimento físico, porque para ele tudo passa pelo corpo. Já a Mayana se transformou em uma crente durante dois meses, literalmente. Ela passou a viver vestida como evangélica, indo a igrejas evangélicas pelo menos quatro noites por semana. A Mayana queria entender como uma mulher evangélica lava uma roupa, estende uma roupa, e qual é o significado desses pequenos gestos de servir ao outro, que é típico das mulheres cristãs. Ela queria encontrar a beleza dos gestos, porque não acreditava naquilo. Então ela só conseguiria viver daquela maneira se encontrasse alguma beleza na servidão. 

    Vocês chegaram a construir, entre vocês, as informações que estão fora da tela: a doença da Ana, quanto tempo ela ficou doente, como era a estadia do Salvador na prisão?

    Aly Muritiba: Não, eles não me pediram e quando não me pedem, eu não faço. Eventualmente para determinados atores, isto é necessário. Mas eu tive a sorte porque para estes, não era. Então foi muito tranquilo. Quase ninguém fala da Michelle Pucci, que interpreta a amada morta, porque o tempo de tela é muito pequeno, mas tudo gira em torno dela, é de um desprendimento para fazer aquelas cenas, é difícil uma atriz profissional topar ficar apenas três minutos na tela, fazendo sexo, nua. Mais eu disse que seria ela que iria segurar a câmera naquela cena e filmar, ela ia decupar aquela cena, escolher onde colocar a câmera e como filmar. Essas cenas foram feitas durante dois dias, e durante dois dias ela ia experimentando, disse que essa foi a melhor experiência da vida dela em cinema.

    Para ela era difícil. Então a gente começou a construir uma história, falar sobre a moral católica. A Michelle teve o privilégio de poder segurar a câmera e dirigir a própria a cena. A gente conversava muito sobre isso, e me incomoda demais – eu sou heterossexual – filmes de homens heterossexuais quando eles filmam cenas de sexo e mostram o corpo feminino de maneira erótica, mas não filmam o corpo masculino de maneira erótica. Acho que o corpo masculino pode ser tão erótico quanto o feminino. Eu, homem heterossexual, posso achar um corpo masculino tão erótico quanto acho um corpo feminino. Conversava muito com a Michelle e falava: “Preciso que o corpo do Lourinelson seja gostoso, quero que mostre pra gente o quanto você deseja esse cara”. Ela entendeu o que eu estava propondo.

     

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