A 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes foi muito elogiada pela qualidade dos curtas-metragens apresentados, tanto na mostra competitiva Foco quanto nas sessões paralelas temáticas e regionais.
Noite Escura de São Nunca, de Samuel Lobo, foi eleito o melhor curta de acordo com a crítica, enquanto o público preferiu Madrepérola, de Deise Hauenstein. Paralelamente, o júri do prêmio Canal Brasil escolheu Eclipse Solar, de Rodrigo de Oliveira.
O AdoroCinema conversou em exclusividade com Pedro Maciel Guimarães, um dos três curadores dos curtas-metragens de Tiradentes, junto de Cleber Eduardo e Francis Vogner dos Reis. Ele explicou como funciona o processo de seleção, destacando as transformações dos filmes escolhidos nos últimos anos:
Quantos curtas vocês receberam para a seleção da Foco?
Pedro M. Guimarães: A abertura de inscrição de Tiradentes se faz para os curtas e os longas, então não tem uma inscrição específica para a Foco. É uma média de 700 filmes, um número que não varia tanto de um ano para o outro. Ele está estacionado entre 600 e 700 há uns dois ou três anos.
São três curadores no projeto. Como funciona a divisão para ver 700 curtas?
Pedro M. Guimarães: É tudo por Vimeo. Há dois anos a gente eliminou a cópia em DVD. Ainda recebemos algumas, no máximo dez. Mas em geral, vemos por Vimeo. A troca é muito mais fácil, muito mais rápida, você não precisa fazer envios materiais. Eu e o Francis Vogner dos Reis fazemos uma primeira triagem, enquanto o Cleber Eduardo assiste aos longas. Depois de um tempo, o Cleber começa a ver os curtas. No final, no começo de dezembro geralmente, os três se reúnem para fazer a discussão final e montar as grandes. Tudo isso dura mais ou menos um dia e meio.
A Mostra Foco também tinha a intenção de manter o tema "espaços em conflito", que norteou os longas?
Pedro M. Guimarães: Não. O tema anual norteia mais ou menos o primeiro final semana e alguns debates que acontecem no primeiro e no segundo finais de semana. Mas ele não pauta a seleção dos curtas de maneira global. São montadas cerca de duas grades de acordo com o tema, o que varia de ano para ano, mas não passa disso. Digamos que o tema central não contamina todas as grades. A Foco é feita sem pensar nisso. Seria impossível fazer um festival unicamente sobre um tema específico, não existe essa pretensão.
Há quanto tempo você faz a curadoria dos curtas? Tem percebido mudanças temáticas ou estruturais nos filmes recebidos?
Pedro M. Guimarães: Faço a curadoria há cinco anos, desde 2011. A questão do digital cresceu exponencialmente: hoje em dia não recebmos mais curtas em película. Quando existem, são um ou dois, e a organização faz o pedido para mandarem cópia digital. Vivi dentro da curadoria de Tiradentes a morte da película para os curtas-metragens e, acho que se você for entrevistar o Cleber Eduardo sobre os longas, vai ouvir mais ou menos a mesma coisa. Acredito que tenha sido de 2014 para 2015 que desapareceu. Ainda existiam longas em película, a maioria era em 35mm! De um ano para o outro, deixaram de existir.
É curioso que mesmo com o acesso ao digital não tenha aumentado o número de filmes inscritos.
Pedro M. Guimarães: Aumentou, mas antes de 2011. Por isso penso que o digital já vinha sendo acessível para os jovens diretores. Quando a película deixou de existir, eu já estava em um patamar onde o digital estava ali dentro desse número que roda em torno de 600 e 700 filmes. Então aumentou, sim, mas no final dos anos 2000. Em 2010, já estava estabilizado.
Os curtas da mostra Foco costumam ser chamados de "experimentais", mas o termo é vago. Que experimentações vocês encontram nos filmes dessa mostra?
Pedro M. Guimarães: Quando as pessoas falam que a Foco é mais experimental eu não concordo, porque experimental é igual a ensaio. Existe um limbo nesse tipo de definição. O experimental tem mais ou menos uma definição clara, mas o ensaio é um limbo total. Se você vir a Foco esse ano, vai perceber que os filmes são basicamente ficções, mais ou menos narrativas. Existe um filme experimental de verdade na seleção, acho que um documentário também. Gostaria que isso fosse discutido mais, o modo como a ficção tomou conta dos curtas que selecionamos.
O grande diferencial da Foco é a questão elementar do que gostamos e não gostamos. Primeiro, é um interesse que o filme desperta em nós, acima de tudo, para depois vermos se isso é experimentação de linguagem ou não. O que me chamou atenção esse ano foi uma espécie de retorno da ficção, do storytelling. Não posso dizer de uma maneira geral, mas para a Foco foi este o caso.
Existiam balizas claras entre os três curadores para selecionar filmes que representem nosso tempo, ou filmes com uma conotação política, por exemplo?
Pedro M. Guimarães: Não. No dia da reunião de pauta final, já chegamos com os nossos filmes preferidos. Particularmente, posso dizer que esses grandes temas não me pautam: quero ver filmes que me interpelam, sejam eles de qualquer gênero ou formato. Tenho uma predileção enquanto espectador e pesquisador por ficções narrativas que trabalhem com gêneros - no sentido "genre", não "gender". Mas posso ser interpelado por um filme experimental da mesma maneira. Carrego comigo os meus gostos para a reunião final. Isso pode prevalecer ou não. Todo trabalho de curadoria é um trabalho de convencimento: temos que convencer o outro de que aquele filme merece entrar e o porquê.
Nos últimos anos, conseguimos fazer uma Foco totalmente inédita. No ano passado, optamos por algo diferente, pois tinha um filme muito bom que queríamos passar e não era inédito: Estátua, da Gabi Amaral. Ele acabou ganhando, inclusive. Esse ano, conseguimos manter o ineditismo, mas isso não significa que no ano que vem será igual, caso aconteça a mesma coisa do ano passado. Isso não é uma cláusula pétrea, é uma coisa que conseguimos impor com o tempo. Queremos que as pessoas pensem os filmes e que os guardem, esperando a seleção de Tiradentes.
Muitos diretores que já apresentaram filmes em Tiradentes estão de volta esse ano. Existe uma noção voluntária de política dos autores em Tiradentes?
Pedro M. Guimarães: Existe. O que pauta os festivais do mundo, querendo ou não, é o festival de Cannes. Ele criou essa ideia da autoria e se retroalimenta dela. Nós fazemos igual. De maneira, esta é uma política interessante de manter. Desde sempre, cultuamos autores na crítica, na teoria, nos festivais, mas isso não passa por cima do senso estético. Se um diretor pisa na bola, ele é rejeitado numa boa. Fizemos isso este ano com dois diretores que vínhamos acompanhando. Desta vez, eles fizeram filmes que não mereciam passar.
Nem na Foco, nem nas outras mostras?
Pedro M. Guimarães: Nem nas outras mostras, por uma questão também de duração. Poderíamos falar longamente sobre os filmes muito longos. Um filme de 30 minutos inviabiliza dois de 15 minutos. Fizemos algumas escolhas no sentido de tentar dar espaço para uma pessoa que não é tão conhecida, que não tenha o filme tão rodado em festivais, ao invés de outro que vem apresentando o filme há muito tempo, mesmo sendo um autor que admiramos. Mas a noção de criar um autor e acompanhá-lo, vendo até onde ele pode render e onde pode crescer, é algo que pauta nosso pensamento.
Você falou sobre filmes longos demais. A maioria dos curtas da Foco tem mais de 20 minutos.
Pedro M. Guimarães: Por isso, diminuiu o número de curtas, porque os filmes estão muito longos e queríamos manter uma qualidade mínima na Foco. Isso é geral, não só para a Foco. Os filmes este ano bateram amplamente o teto dos 25 minutos, que era o máximo estipulado até dois anos atrás. Passamos de 25 para 30 minutos porque vimos que não tinham mais filmes com menos de 25 minutos, a duração estava crescendo aos poucos. Não existem mais curtas de 15 minutos, nem de 10 minutos.
Fico me perguntando até que ponto os festivais não têm uma responsabilidade nisso porque a partir do momento em que você aceita um curta de 30 minutos, o diretor vai fazendo até chegar nos 29 minutos. Em Clermont-Ferrand é assim. Eles passaram o limite máximo para 45 ou 50 minutos, em determinado ano que eu fui. Nesta edição a grande maioria dos filmes tinha 45, 46 e 47 minutos. Uma coisa alimenta a outra, a sede do diretor de fazer um filme mais longo alimenta a subida do tempo mínimo do festival e vice-versa.
Acredita que os curtas selecionados representem plataformas para o diretor passar o longa, ou existem autores que pretendem fazer carreira em curta-metragem?
Pedro M. Guimarães: Vou te falar como observador dos longas, porque não faço a curadoria dos longas. Vejo uma vontade maior, talvez uma liberdade de se experimentar bastante com o curta antes de passar ao longa. Os curtas acabam tendo muito debate em Tiradentes. Com debates e as sessões nobres dos curtas de competição, sinto que as pessoas não estão mais com tanta pressa de passar aos longas. A duração dos curtas vai neste sentido: os diretores vão experimentando e experimentando, até o dia que passam de um curta de 29 minutos para um longa de 65 minutos. É o caso do Miguel Antunes Ramos, de Banco Imobiliário. Ele fazia curtas muito longos e agora fez um longa curto. Vejo a vontade de estabelecer o início de uma carreira, um embrião de carreira, que se apoie nos curtas antes de passar para os longas.