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    "Fazer cinema independente é um gesto político", afirmam Aline Portugal e Julia De Simone, diretoras de Aracati

    O AdoroCinema conversou com a dupla durante a 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes.

    Divulgação

    Uma das melhores surpresas da 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes até o momento foi o documentário Aracati, de Aline Portugal e Julia De Simone. As cineastas viajaram ao interior do Ceará, onde um vento muito específico, que dá nome ao projeto, transformou a geografia da cidade e a vida dos moradores.

    Aracati possui imagens belíssimas e ótimas entrevistas com habitantes locais, combinando ao mesmo tempo o registro realista e a ambição estética. Leia a nossa crítica.

    O AdoroCinema aproveitou para conversar em exclusividade com a dupla de diretoras:

    Leo Lara / Universo Produção

    Como surgiu o projeto de Aracati?

    Julia De Simone: Uma pessoa falou para a gente sobre um vento que passa no Ceará, todo dia, na mesma hora, e as pessoas vão para a calçada esperar o vento passar. A gente ficou intrigada com essa ideia, então viajamos para tentar entender. Escrevemos um projeto na época, mas a gente nunca tinha ido ao Ceará, por isso fomos e fizemos nosso primeiro curta-metragem, Estudo Para o Vento. Esse foi um mote inicial que nos levou a esse lugar, para conhecer o vento e as pessoas. Mas depois esta ideia meio romântica, das pessoas na calçada esperando pelo vento, foi se transformando em outra coisa. Existem muitos outros elementos acontecendo ali. São várias forças: pessoas, vento, natureza, artifício...

    Aline Portugal: Com a passagem do curta ao longa, nós descobrimos no meio do processo que seria necessária uma temporalidade maior, pelo tempo que o filme propõe. 

    Julia De Simone: O fato de ter feito o curta foi liberando a gente para ir além. Foi um processo de pesquisa, de aprofundamento. O processo foi crescendo, e o filme também.

    Divulgação

    Como conseguiram representar em imagens o vento? Qual foi o processo, da apreensão realista à construção poética?

    Julia De Simone: Nós fomos aprofundando o olhar. Por exemplo, os aerogeradores eram coisas que queríamos muito filmar, desde os cata-ventos que filmamos no curta anterior. Isso mostra a transformação da região. Os parques eólicos estão se proliferando, quase não existe mais espaço na costa para colocar os aerogeradores, de modo que estão sendo criadas tecnologias para botar no interior, ou mesmo dentro do mar. Com Aracati, tudo era bastante construído. Como a gente já tinha filmado com uma pequena câmera, entendemos o processo, a linguagem através daqueles enquadramentos. Era questão do que olhar, e como olhar. Nós tínhamos um jogo de lentes, trocando a cada plano. 

    Aline Portugal: Tenho um pouco de dificuldade com o termo “poético”. Seria a poesia em oposição a o quê? Isso traz tanto a potência plástica quanto as tensões da região, da relação com o espaço. Isso vai junto. Quando se fala em “filme poético”, é como se houvesse um esvaziamento das tensões e do lastro do real que as imagens também trazem. Isso está misturado. A estética produz sentidos, não está fora deles.

    Julia De Simone: A gente tinha muita consciência que era uma estética que produz sentido. Isso serve tanto para a fotografia quanto para a montagem.

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    Não existe uma suposta objetividade no filme. Vocês deixam clara a presença da equipe e da câmera naquele local, enquanto interagem com os moradores.

    Aline Portugal: Isso é uma relação. Assim como o vento só é captado quando entra em relação com um espaço ou pessoa, ou filme também é uma relação. Isso vem de uma proposição construída no cinema atual. O César Guimarães, da UFMG, fala nessa “estética da hospitalidade”. Eduardo Coutinho também tem isso.

    Julia De Simone: A gente não tinha a preocupação de se colocar no filme, nem em voz, nem em imagem, mas era preciso estabelecer esses encontros. A gente estaria dentro dessa equação. Quando as imagens trazem a nossa presença, é porque o personagem nos coloca dentro do filme, é uma demanda deles. É preciso estar aberto aos encontros.

    Aracati pode ser considerado um filme político?

    Aline Portugal: O que não é político? Existe a noção da política como mise en forme, criar formas de vida, de encontro, de institucionalidade... Elas se colocam em relação, e constituem estruturas de poder. Os filmes trazem para as imagens conflitos que estão postos naquele lugar: o apagamento, as temporalidades que coexistem, os modos de vida se transformando. As relações são díspares: quando se constrói um açude, tira-se a cidade, e ninguém é perguntado sobre aquilo. A arquitetura da cidade é quase uma Brasília do sertão.

    Julia De Simone: Fazer cinema independente é um gesto político, escolher filmar no sertão é um gesto político, fazer com pouca grana e com equipe pequena é um gesto político. Isso está envolvido em todas as nossas ações, de todas as formas. Da mesma forma, fazer cinema comercial também seria um gesto político, mas de uma política diferente...

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    A maioria dos filmes da Mostra de Tiradentes tem sido questionada pela representação das minorias, como os negros, as mulheres... No caso de Aracati, questionou-se a representação do sertanejo. 

    Aline Portugal: A gente aciona um repertório imagético da história do cinema. É questão da relação com o outro, sobre os modos de se colocar. Mas é um pouco caso a caso.

    Julia De Simone: A nossa relação com os personagens é de grande empatia. Não estava passando pela minha cabeça como representar o sertanejo, ou como não representar...

    Aline Portugal: Estamos vivendo um momento em que questões de representação estão muito em voga. Qualquer filme é questionado sobre o possível machismo, qual é a posição da mulher, qual corpo aparece nas imagens... Por um lado, isso é interessante, por ser a postura de uma luta, de uma afirmação, mas por outro lado é preciso tomar cuidado. Isso pode travar processos artísticos mais complexos. Quando se criam regras específicas, como no teste de Bechdel, isso vai no sentido contrário da investigação artística. É bom que a conversa avance, mas como se dizer qual corpo está empoderado? Como se mede isso em termos artísticos? Cada investigação passa por um lugar...

    Tiradentes tem grande número de projetos dirigido por mulheres, mas isso constitui uma exceção no cinema brasileiro.

    Julia De Simone: Isso se aplica para qualquer área. Sempre existem menos mulheres em cargos de poder, menos mulheres executivas. Talvez seja uma questão de tempo. Vamos continuar ocupando o máximo espaço possível.

    Aline Portugal: Existem várias coisas acontecendo, como o prêmio Cabíria, para artistas femininas, mas é sempre difícil. Por um lado, é interessante, mas por outro, isso reafirma as diferenças. Vamos ter que criar uma equipe só de mulheres? Acredito que seria melhor compor com a diversidade. Isso ajudaria a avançar mais.

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