Acaba de estrear nos cinemas uma fantasia bastante singular: O Novíssimo Testamento imagina um mundo no qual Deus mora na Bélgica, ao lado da esposa e da filha pequena. Ele é agressivo, bebe e fuma demais, e por maltratar sua filha, a garota planeja uma vingança, divulgando a todas as pessoas do mundo as suas datas e horários de morte. Depois disso, obviamente, o mundo fica um caos...
A produção é leve, divertida e otimista, tendo cativado a Academia do Oscar - a comédia foi inclusive pré-selecionada na categoria de melhor filme estrangeiro. Nós já assistimos à produção, e gostamos bastante do resultado. Abaixo, você descobre a nossa conversa com o simpático e inteligente Jaco Van Dormael, veterano diretor belga responsável por esta história:
A ideia de Deus estar vivo, morando na Bélgica, é interessante, mas achei ainda mais curiosa a premissa de divulgar a todas as pessoas do mundo a data de morte. Como surgiu a ideia?
Jaco Van Dormael: Imaginei que Deus teria uma mulher e uma filha da qual ninguém tinha ouvido falar. Isso vem do fato que, no Novo Testamento, tem apenas umas três frases ditas por mulheres, então seria engraçado acrescentar isso. Mas concordo com você: o filme avança realmente quando cada personagem descobre a data da sua morte, o que muda tudo. Todo mundo já ouviu falar de alguém que tinha uma especulação da data de sua morte, e eu mesmo vivo como um imortal, como se fosse viver 200 ou 300 anos: eu como demais, bebo demais, não faço esporte... Às vezes passo dias fazendo coisas que detesto, e sei que a ideia da morte torna a vida preciosa.
Você teve dificuldades para financiar e produzir uma obra tão fora dos padrões?
Jaco Van Dormael: Com esse filme, pela primeira vez, eu decidi produzir um projeto meu. Isso foi fundamental, porque eu não queria ouvir exigências como “Deus precisa beber menos, fumar menos” ou algo do tipo. Para ter a maior independência possível, eu me cerquei de amigos que ajudaram na produção e nas responsabilidades. O Novíssimo Testamento é feito com uma pequena equipe, no entanto, nós tomamos nosso tempo, gravamos durante 14 semanas. Tentamos transformar tudo que pudesse sair caro demais. Por exemplo, não tínhamos recursos para recriar um acampamento na Espanha nos anos 1960, então colocamos alguns brinquedos e escrevemos “acampamento na Espanha”, e estava resolvido. A narração não precisa reproduzir o real, esse estilo permite a fantasia.
Nessa história, temos a impressão de que tudo pode acontecer: girafas passeiam por uma cidade vazia, Deus aparece numa máquina de lavar... Existiam limites para a narrativa? Algo que você sabia que não faria de modo algum?
Jaco Van Dormael: O que eu adoro na comédia é que nunca se vai longe demais. Existem limites no drama, quando precisamos parar porque fica doloroso demais, mas na comédia, não tem problema, pode-se sempre continuar, não existe tabu. Pode-se rir de tudo, com todo mundo – pelo menos, espero que seja assim. É como o palhaço, quando cai: a gente não tem medo que ele se machuque. Existe uma forma de teatralidade: O Novíssimo Testamento é um conto surrealista para adultos.
A fantasia do filme possui uma mistura de efeitos concretos (o braço mecânico de uma personagem) e outros claramente virtuais (os pássaros, o céu bordado de flores). Como decidiu quando filmar de modo realista, e o que usar efeitos digitais?
Jaco Van Dormael: Nós fizemos a mesma pergunta, sobre os limites do falso que parece real, e do real que parece falso. Algumas coisas precisavam ser o mais realista possíveis, como o braço cortado da personagem. Isso era importante para despertar empatia com ela. Já o céu bordado de flores faz parte da narração, e não da psicologia dos personagens, por isso ele podia ser mais distante da realidade. A alegoria pode parecer falsa, mas nós nos acostumamos rapidamente, porque sabemos que estamos em uma ficção. É como um truque de mágica: nós sabemos que não é real, mas estamos dispostos a acreditar.
Em uma entrevista, Benoît Poelvoorde disse que aceitou participar do projeto sem sequer ter lido o roteiro. Como ocorreu este encontro?
Jaco Van Dormael: Não foi exatamente um encontro. Como este era um filme feito com amigos – conheço alguns deles há mais de 30 anos, desde os meus curtas-metragens – queria que o elenco também fosse feito de amigos. Eu nunca tinha trabalhado com Benoît Poelvoorde, embora a gente se conheça há mais de 25 anos. O mesmo ocorre com Yolande Moreau: a gente se conhece desde que eu tinha 18 anos. Eu queria misturar atores conhecidos com desconhecidos, incluindo pessoas do teatro e do circo. Benoît me disse: “Eu aceito fazer qualquer coisa!”. Isso é formidável, porque as pessoas mais gentis são as que fazem melhor os vilões - e Benoît é uma pessoa adorável.
Como se propõe a uma estrela como Catherine Deneuve a personagem de uma mulher apaixonada por um gorila?
Jaco Van Dormael: A ideia apareceu quando eu a vi numa entrevista na televisão. Era o momento dos protestos contra o “Casamento por Todos” em Paris, cheios de crianças carregando cruzes contra o casamento gay. Isso me parecia tão surrealista e insano... Na televisão, à noite, Catherine Deneuve deu uma entrevista, dizendo que isso não era da conta de ninguém, que não existem formas de amor autorizadas ou proibidas. A religião não deveria interferir nisso. Achei excelente, principalmente vindo de um ícone. Ela não tem medo de nada e fala o que pensa. Achei então que seria perfeita para o papel de Martine, apaixonada por um gorila mais carinhoso que o seu marido. Foi muito fácil convencê-la: eu enviei o roteiro, ela disse sim logo depois.
As crianças têm um papel fundamental na história. Além de a personagem principal ser a filha de Deus, existem dois garotos que cuidam da narração em off. De que maneira ocorreu o trabalho com o elenco mirim?
Jaco Van Dormael: Não tenho um método especial para trabalhar com crianças, e nem para dirigir os adultos, aliás. Tento saber apenas do que eles precisam, porque cada um tem necessidade de algo diferente. Sempre tive facilidade com crianças, são as mais fáceis de dirigir, porque elas podem se divertir bastante com a filmagem. Contanto que eles se divirtam durante as filmagens, eu estou satisfeito. Aos 10 anos de idade, Pili Groyne já tem a inteligência dos sentimentos, e compreende como funciona o trabalho de ator. Essa inteligência pode vir em qualquer ideia, para todo mundo. É isso que permite atuar.
Quais foram as reações dos grupos religiosos à imagem de um Deus agressivo e alcoólatra?
Jaco Van Dormael: Eu realmente não pensei nisso quando estava escrevendo ou filmando, porque não tinha a impressão de fazer um filme que chocasse o público – e também não fiz nada para não chocar. Para mim, era apenas um conto. Fiquei surpreso, no lançamento de O Novíssimo Testamento, ao ler respostas muito boas da Igreja belga. No site da Igreja, o filme estava aconselhado aos crentes por debater o papel da mulher na sociedade, a existência do paraíso e outros temas interessantes. Foram reações muito positivas.
De certa forma, o tema do filme encontra a moral religiosa, quando sugere que o amor é a principal ferramenta para unir as pessoas.
Jaco Van Dormael: Sim, o amor, ou pelo menos a felicidade. Não sei quem disse essa frase, mas alguém afirmou que “Se a felicidade fosse uma casa, a sala de espera seria o maior cômodo”. Os personagens deste filme passaram a vida inteira na sala de espera, sonhando com o dia em que a felicidade chegaria. O que a filha de Deus faz é abrir essa sala de espera, possibilitando formas de felicidade imprevistas, com amores fora do comum. Todos eles descobrem que são capazes de inventar mais do que imaginavam. Por isso imaginamos uma história de amor entre o assassino e sua vítima, o gorila e a mulher abandonada, o tarado e sua paixão de infância. Se tudo é possível, existem infinitas possibilidades de encontrar o amor.
Outro personagem curioso é o garoto que sonha em se tornar menina antes de morrer. O tema é mostrado de modo bem delicado.
Jaco Van Dormael: Foi algo relativamente simples. Isso vem de uma história real que ocorreu na Inglaterra. Um garotinho sofria com leucemia, e os pais perguntaram o que ele gostaria de fazer no tempo que lhe restava de vida. O garoto respondeu que queria usar vestidos. A escola acatou o pedido, e o garoto começou a usar vestidos, mas os outros pais fizeram uma petição para proibir que o menino usasse roupas de mulher. No mundo real, infelizmente as coisas terminaram muito mal. Por isso o filme tenta levar a utopia adiante, acreditando que podemos fazer tudo que queremos, e rir de tudo.
Você não é religioso, mas o tom do seu filme é repleto de otimismo, de fé - talvez não em Deus, mas na possibilidade de união entre as pessoas. É uma obra muito calorosa.
Jaco Van Dormael: De fato, eu amo muito todos os meus personagens! Vivo com meus personagens durante muitos anos, como quem convive com fantasmas. Eu os escuto falar, e amo muito todos eles. O momento mais emocionante ocorre quando os atores chegam à filmagem e transformam esta ideia numa pessoa de carne e osso, muito mais rica e complexa do que eu poderia imaginar. Gosto demais dessas histórias, e gosto muito quando termina bem!