Muitas vezes, os jornalistas têm a oportunidade de conversar com diretores sobre os seus filmes, e conhecer mais sobre a origem do projeto, as escolhas feitas no roteiro e na direção etc. Mas são raras as vezes em que um diretor (ou diretores) têm a disponibilidade e a abertura para falar não apenas sobre seus filmes, mas sobre sua visão de cinema, sobre suas referências culturais e sua visão de mundo.
Este foi o caso do nosso bate-papo exclusivo com José Joffily e Pedro Rossi, autores de Caminho de Volta, que acaba de estrear nos cinemas brasileiros. O documentário apresenta as dúvidas de dois brasileiros que moraram em países estrangeiros, e agora pensam em retornar: André é um fotógrafo respeitado, que constituiu família em Londres, mas enfrenta uma crise financeira e pensa em trazer a esposa e os filhos ao Brasil. Maria do Socorro se mudou para os Estados Unidos para ficar perto do filho solteiro, embora não fale inglês nem tenha atividades neste país.
O AdoroCinema gostou muitíssimo da produção (leia a nossa crítica), que aborda com honestidade e delicadeza a falência do sonho estrangeiro. Mas o projeto nem sempre foi assim, como você descobre na entrevista abaixo.
Escolhendo os personagens
José Joffily: Na pesquisa inicial, tínhamos muitos registros de imigrantes. Mas os temas se repetiam, e quando vimos o material, várias pessoas diziam o que pensavam que queríamos escutar. Elas querem agradar, e se mostrar interessantes. De fato, são pessoas interessantes, mas seria repetitivo incluir todos os depoimentos. Depois, achamos que seria melhor ter menos pessoas, e quanto mais próximas elas fossem de nós, melhor. A Socorro é minha sogra, e ela estava voltando depois de 24 anos fora do país. Aí pensei: por que viajei tanto para encontrar pessoas, se a minha sogra está voltando para cá?
Já o André é filho de um amigo meu. Quando o encontrei, queria que ele cooperasse com a gente na produção, indicando pessoas. Nós fomos a vários nichos de imigrantes em Londres com o André, até um dia em que percebemos que ele estava em um grande conflito com a esposa, a casa, o dinheiro, pensando em voltar. Logo percebemos que o André era um personagem muito melhor do que outros que vimos.
Pedro Rossi: A gente não queria ninguém exótico, tinham que ser pessoas com quem o público pudesse se identificar, com problemas comuns.
José Joffily: Fiz outros filmes sobre vocações, tanto religiosas quanto políticas e artísticas. Sempre trabalhei com seis personagens, não sei por qual razão. Mas quando comecei a fazer Caminho de Volta com o Pedro, reduzimos o número. Cogitamos a possibilidade de incluir alguém em Portugal, mas desistimos.
Pedro Rossi: A intimidade com os personagens se tornou mais importante. O modo íntimo de fazer o filme, que é pequeno na forma, acabou se impondo.
Limites e restrições
José Joffily: Todo documentário tem um limite. Você filma apesar das restrições, ou talvez você filma o que o personagem permite que você filme. Por mais ambicioso e xereta que o documentarista seja, ele sabe que está limitado de certa forma. Em outros documentários, me pediram para tirar trechos, já me barraram implícita e explicitamente. O documentarista sempre quer mais do que pode filmar, mas é preciso aprender a filmar apenas o filmável. O Pedro tem uma câmera principal, e eu tinha outra complementar, o que nos dava mais mobilidade para flagrar situações que não pegaríamos no caso de ter uma câmera só.
Pedro Rossi: Para a nossa sorte, a Socorro e o André estavam interessados em ser personagens, o que foi ótimo. No documentário, é fundamental o personagem querer fazer parte de um filme. Tem a questão da perna mecânica do André, por exemplo, que chama muito a atenção. O “homem sem perna” atrai muito o público, e uma pessoa da equipe inclusive diz “Poxa, mas você nem me avisou que ele não tinha uma perna!”. Mas isso não é uma questão para nós, porque também não é uma questão para ele.
Sonho brasileiro
Pedro Rossi: Quando começamos a fazer o projeto, queríamos falar sobre o sonho brasileiro, porque era a época em que o Brasil estava na moda, e vários gringos estavam vindo para cá. O projeto nacional era sobre o "Brazilian Dream".
José Joffily: O documentário tem essa maluquice: você começa com uma intenção, e depois tudo muda. Nós escrevemos sobre pessoas vindo ao Brasil com orgulho, durante os anos Lula. Eram tempos de modernidade.
Pedro Rossi: Existia muito otimismo nessa época, até o primeiro governo da Dilma. Depois as coisas foram ladeira abaixo.
José Joffily: O Fernando (filho da Maria do Socorro), por exemplo, tem muita admiração pelos Estados Unidos e pelo povo americano, e hoje ele está lá, trabalhando como porteiro, é a profissão dele. Isso é surpreendente, porque quinze anos atrás eu fiz um filme, Dois Perdidos Numa Noite Suja. Eu estava em Nova Iorque, filmando uma cena importante com o casal tendo como pano de fundo as Torres Gêmeas. Quando voltei ao Brasil, dois dias depois as torres foram detonadas. Eu pensei: “Ferrou a minha continuidade!”. Morreram cinco mil pessoas, e eu pensei primeiro na continuidade...
De qualquer modo, o caminho de volta é eterno. A gente está sempre pensando em voltar a ser o que era, voltar para onde estava. Esta é uma dinâmica permanente.
Pedro Rossi: Esta foi a reflexão do filme: a impossibilidade de voltar.
José Joffily: Quando entrevistamos o pai do André, falamos com ele durante algumas horas, e ele tocou nesse assunto. É a ideia do filósofo Heráclito, de que ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. Descobrimos que este era o elemento que movia a história. Eu inclusive mandei para o Pedro um texto do Lukács, chamado “Narrativa e Descrição”, que apresenta duas vertentes: a descrição estaciona a história, enquanto a narrativa promove o andamento dela, colocando o homem dentro de um contexto. Na hora em que você descobre o tema do filme, existe uma grande liberdade para escolher o que entra e o que sai na montagem.
Montagem
Pedro Rossi: A gente tinha bastante material, mas encaramos a montagem como um filme de ficção.
José Joffily: Para mim, não tem diferença nenhuma entre montar uma ficção e um documentário. Comecei a organizar o material com o Pedro, mas a certa altura, a nossa produtora, a Isabel Joffily, achou que seria importante convidar alguém de fora do projeto para incorporar à equipe. Pensamos em quem seria, e finalmente chamamos a Jordana Berg, com quem sempre quisemos trabalhar. Ele concordou mais com as ideias do Pedro e da Isabel do que com as minhas! Formou-se um trio contra as minhas ideias! Essa ficção ajudou a escolher as imagens. A Jordana não é só uma montadora, ela é uma grande pensadora.
Pedro Rossi: Até um momento bastante avançado da edição, o filme teria apenas o André. Nós radicalizamos, e depois chamamos os amigos para assistirem. Era uma lógica de filme de ficção: pensamos que talvez faltassem algumas cenas, que a gente poderia produzir mais para completar. Uma vez, pensamos que tinham poucos momentos à noite, então faltavam imagens noturnas. Pedimos para o próprio André se filmar em casa. Depois que organizamos o mapa do filme, descobrimos alguns buracos, e testamos também com a Socorro.
José Joffily: Brigamos muito com a ideia de dois personagens, porque no começo, pensamos que não daria certo. Queria apostar só no André, porque ele tinha muito material de arquivo, em Super 8 e VHS.
Pedro Rossi: A gente tinha um esqueleto da Socorro e outro do André. Mas quando juntamos os dois, a coisa funcionou.
O acaso
José Joffily: Algumas histórias são curiosas. A Socorro está voltando, ele devia ficar aqui em casa, então eu não tinha tempo hábil de comprar a passagem, montar uma equipe e filmá-la por lá. Eu peguei uma câmera, mandei pelo correio ao Fernando, que nem sabia como usar uma câmera. Por Skype, eu expliquei como usava uma câmera. Ele perguntou: “Mas eu filmo o quê?”. Eu disse “Sei lá, o que você achar interessante. Só não faz movimentos bruscos. Aperta um botãozinho só”. E as imagens que ele fez são ótimas. A cena do André discutindo com a esposa aconteceu por acaso.
Pedro Rossi: A gente só pediu para eles falarem sobre a vinda para o Brasil. A Emily estava furiosa com ele naquela hora.
José Joffily: A gente sabia que o assunto do relacionamento viria, mas não dissemos mais nada. Demoramos muito para arrumar a câmera e os microfones. Quando a Emily percebeu que tudo estava pronto, ela deu um chute na canela do André. Como ela sabia que as palavras dela ficariam registradas, ela aproveitou. Não precisamos dizer nada, e aquele momento durou oito minutos.
Pedro Rossi: Essa é uma experiência que venho tendo recentemente, sobre a fronteira da ética no documentário. O que você pode mostrar, em que horas é preciso cortar? Principalmente por serem pessoas próximas, então não queria feri-las ou expô-las demais. Existe ao mesmo tempo o valor da catarse: as pessoas desejam a exposição, como uma forma de libertação. Na cena da Socorro cantando New York New York, eu só pedi para eles conversarem sobre viagem. Eu me escondi num quartinho em frente, fiquei no escuro esperando. Foi bom para eles terem aquela despedida, cantando juntos, de mãos dadas. Para o André e a Emily, também foi importante ter aquela discussão tão forte.
José Joffily: É uma questão complicada: a minha esposa, filha da Socorro, não queria que eu fizesse o filme, para não expor a mãe dela. Mas tudo que a Socorro queria na vida era fazer esse filme. Ela ficou felicíssima, acompanhou a montagem, a exibição, e foi ao festival É Tudo Verdade.
Filmes possíveis
Pedro Rossi: De todas as coisas que não entraram no filme, tem uma que me ressinto. A irmã da Socorro foi com ela para Nova Iorque. Ele era uma grande companheira de vida, e a Socorro voltou para o Brasil para se despedir dessa irmã, que tinha 97 anos de idade. Ela faleceu no dia em que eu voltei de Londres. Eu só pensava: por que eu não filmei isso?
José Joffily: Tem um plano que eu lamento não ter editado. Quando essa senhora está dentro de uma van, ela começa a cantar uma música do Gonzaguinha, acapela, aos 97 anos. Não sei porque ela fez isso, mas ela simplesmente olha para a câmera e canta. Foi a música inteira. Eu fiquei arrepiado, e gostei tanto deste momento que depois pedi para ela cantar de novo, em casa. Ela cantou mais uma vez, e não colocamos essa cena no filme. Outro momento tinha ela escolhendo um disco para colocar na vitrola, e era um disco do Gonzaguinha.
Pedro Rossi: Este seria outro filme possível, e seria muito bonito.
José Joffily: Também teve um momento de entrega de presente do amigo secreto, muito bonito. Mas acabou não entrando no filme. Uma pena. A Jordana começou a meter a faca, e eu ainda reagi!
Pedro Rossi: Outra regra que mudou: nós dissemos no começo que não teriam entrevistas em momento algum.
José Joffily: Era um dogma que eu mantive por um tempo, até perceber que estava rígido demais. Existe um poema muito bonito do Neruda, uma ode ao lugar comum. Ele fala sobre todos os lugares comuns, como a lua, as cartas de amor. No final, ele diz que tudo isso é lugar comum, mas também é imprescindível, e quem foge ao mau gosto cai no gelo. Sempre achei isso muito estimulante para não achar que lugares comuns são ruins. É mais importante ser verdadeiro do que ser original.
Documentário, ficção
José Joffily: Meu primeiro filme foi um documentário, em 1977. Era um documentário sobre a Praça Tiradentes. Já o segundo era a ficção Alô Teteia, de 1978. Mas na época, misturar ficção e documentário era um crime, você era agredido em praça pública. Era um sacrilégio, porque o curta-metragem era um território sagrado da resistência. Ainda por cima, esta ficção era uma comédia, um pecado ainda mais grave. Para mim, era um exercício, mas sempre depois de ficção, eu tenho vontade de fazer um documentário.
Pedro Rossi: Eu tenho me encantado cada vez mais com formatos híbridos, algo na fronteira entre documentário e ficção. Esse é o tipo de filme que tenho vontade de fazer – mas não apenas o que tenho vontade de assistir, porque quero assistir um pouco de tudo. Todo documentário é um filme de ficção, de alguma forma. Nós vamos fazer mais um filme juntos, o Soldado Estrangeiro. Acabamos de ganhar um edital para ele. É um filme sobre brasileiros que, por vocação, se alistam em exércitos estrangeiros, às vezes por questões ideológicas, mas principalmente pela vontade de serem guerreiros, de darem tiros. Eles estão interessados em serem protagonistas de algum evento importante, que o mundo inteiro comenta.
Dogmas e movimentos
José Joffily: É muito atraente trabalhar com um filme sem fronteiras da ficção e do documentário. O Paulo Emílio Salles Gomes tinha uma coisa super legal a propósito do cinema. Ele dizia: "O cinema não existe, o que existe são os filmes, cada um com sua particularidade e cada um tendo uma teoria por si só". Então, é uma forma de você se aproximar do cinema sem o dogma. Eu acho que eu único dogma na realidade é a narrativa. Gosto da narrativa, mais do que da descrição. Eu gosto de uma coisa que nem sempre é fácil fazer, que nem sempre você acerta. E acho que tem filmes bons, filmes narrativos bons e filmes descritivos bons, assim como filmes descritivos que você não gosta e filmes narrativos que você não gosta. Já os manuais de roteiro, como os do Syd Field, são uma prisão. É uma prisão inclusive para você começar a trabalhar.
Pedro Rossi: Uma vez eu vi algo que eu não sei se foi piada ou se foi de verdade. Parece que os irmãos Coen falaram: "Todos os nossos roteiros foram feitos seguindo estritamente o que o Syd Field mandava".
José Joffily: É até bom, para você subverter é bom. Você ter uma regra, um dogma para você subverter. Os dogmas são apenas formas publicitárias. O Visconti com o neorrealismo, o próprio Rossellini com o neorrealismo... O dogma dinamarquês fazia um enquadramento das regras que não era verdade e nem era comum a todos. Era uma forma de ser identificado em um movimento cinematográfico. Assim como o Cinema Novo. Quem fazia parte dele na realidade, quem seguia o dogma do Cinema Novo? Essa câmera voltada para o povo, a temática que o Cinema Novo propunha... Na realidade, vistas ao longe, essas questões são muito mais pra academia entender do que, propriamente, pra valer.
Verdade e encenação
Pedro Rossi: Você tem uma piada, lembra? De O Céu Sobre os Ombros.
José Joffily: Sim, é o filme do Sérgio Borges, um cineasta de Belo Horizonte. Acho que a montagem é do Ricardo Pretti. Esse filme virou até uma piada entre a gente porque são três personagens que moram em Belo Horizonte, com vidas distintas, mas o filme tem uma certa forma de aproximação com eles que não permite saber se é ficção ou documentário. Na verdade, ele é um documentário, mas ele reencena - o que não é nenhuma novidade - várias cenas dessas vidas dessas pessoas. Por exemplo, um dos personagens é um travesti que é uma prostituta. Então, tem uma cena que é ele fazendo um programa com um taxista. Quando eu assisti o filme, eu achei que era tudo verdade. Depois é que eu fui vendo que não era nada verdade.
Pedro Rossi: Tem outro filme que eu ainda não assisti, mas me falaram sobre Olmo e a Gaivota. O filme todo parece um documentário, então a montadora Marina Meirelles deixa a voz da Petra Costa entrar no quadro falando: "Será que a gente pode repetir? Você ficar um pouco menos irritado?" Eu achei super interessante.
José Joffily: Pois é. No Santiago, do João Moreira Salles, tem uma observação ferina. O Santiago pergunta alguma coisa e o João Moreira fala com grosseria e descaso com o mordomo, algo que terminou sendo o mote do filme. Ele fecha o filme dizendo: "Pois é, nessa ocasião, naquela época, quando eu estava montando o filme, descobri que não era um filme sobre o Santiago, era um filme sobre um patrão e um empregado".
De certa forma, tem isso um pouco no Caminho de Volta, o momento que uma câmera vai pro rosto do André e ele fala, no meio daquela discussão, "A gente está fazendo aqui um documentário sobre a minha volta para o Brasil e você veio me dar um chute na cara". Você está concentrado no filme e, de repente, vê isso. No documentário, a hora melhor hora de você filmar é quando você deveria estar desligando a câmera.