Após apresentarem o filme Big Jato no 48º Festival de Brasília, o diretor Cláudio Assis e o elenco conversaram com os jornalistas sobre este projeto singular na carreira do cineasta pernambucano. Seu primeiro "filme infantil" mostra o amadurecimento de Francisco (Rafael Nicácio), adolescente dividido entre o respeito pelo pai machista e autoritário, o Velho (Matheus Nachtergaele), e a admiração pelo tio Nelson, libertário e avesso ao trabalho (também interpretado por Matheus Nachtergaele).
O AdoroCinema conversou em exclusividade com Cláudio Assis, Matheus Nachtergaele e Marcélia Cartaxo, que interpreta a mãe de Francisco nessa história. Eles explicaram cada fase deste projeto, e explicaram a ideia maluca de que os Beatles não passam de um plágio da banda brasileira Os Betos...
Big Jato é uma adaptação do romance de mesmo nome, escrito pelo autor Xico Sá.
Primeira adaptação literária
Cláudio Assis: "Nos meus outros filmes, eu sempre fazia o argumento. Mas eu tenho uma grande amizade com o Xico Sá, que é padrinho do meu filho. A gente estudou juntos, formamos uma parceria: a primeira entrevista que eu dei, com a pretensão de ser cineasta, foi a ele, que tinha a pretensão de se tornar jornalista e escritor. Ele tem uma pequena participação em Febre do Rato, e participei do processo de escrita do livro. Tivemos a ideia de um dia fazer algo a partir de um material dele. Eu já estou com outro livro dele para filmar para a televisão, a série Abadá, com vários diretores. Mas nós dois decidimos que faríamos o Big Jato.
Eu fiz questão de levá-lo ao set de filmagem, mas ele teve um problema de saúde, e não conseguiu ficar por muito tempo. Quando fiz o corte final, decidi que só passaria o filme se ele visse primeiro. Ele foi a São Paulo para assistir, e dizer o que achava. Como a obra não é minha, é complicado fazer a transposição. Mas ele adorou, e me deixou aliviado.
O roteiro começou com o Xico e a Ana Carolina Francisco, parceira do Hilton Lacerda. Num primeiro momento, nós três fizemos uma viagem ao universo onde se passa o livro, para a gente saber do que estava falando. Passamos dez dias viajando. O Xico é pernambucano, mas ele nasceu no Ceará, a história se passa ali no turno de Juazeiro, Crato, Nova Olinda. Eu conheço muito aquela região, mas a Ana não conhecia. Fomos para digerir aquele local, com o Xico Sá contando as histórias".
Marcélia Cartaxo: "Cláudio foi muito doce com a gente durante o processo. Quando eu cheguei para fazer a personagem, eu dilatei essa mulher. Mas cada dia ele ia conversando, para tornar os personagens mais profundos. Não li nada do livro, deixei para ler depois, para não ser influenciada pela mãe real do Xico Sá. Eu não gosto de fazer algo muito referente. Só as crianças tinham que ler o livro para se preparar, com a ajuda da Maeve Jinkings. Aproveitei essa energia da preparação para me juntar a eles".
Filme infantil?
Cláudio Assis: "Há muito tempo, eu quero fazer um filme infantil, para dar de presente aos meus filhos. Existe um projeto meu com o Paulo Lins, que está meio parado. As pessoas ficam tirando onda: 'Você? Fazendo um filme infantil?' Mas a ideia não morreu. Agora, nesse filme, eu quis dar esse carinho. Vi a possibilidade de começar a olhar para as crianças no cinema. Meu filho está presente no filme, mas não é por ser meu filho que eu o escolhi. O Rafael Nicácio, que faz o Xico adolescente, tem 15 anos... Foi a oportunidade de ver se eu sabia trabalhar com criança também. Queria ver a construção de um caráter, a construção de um poeta. Foi uma conjunção de coisas que levaram a essa doçura".
Produção de baixo orçamento
Matheus Nachtergaele: "Foi uma experiência bem diferente, não só em relação ao outros trabalhos que eu fiz com o Cláudio, mas em relação a todos os trabalhos que eu fiz. O fato de ter construído dois personagens grandes fez com que eu tivesse outra experiência. Apesar de ser um baixo orçamento, a equipe conseguiu se organizar para me ajudar. Primeiro, eu fiz todo um personagem, e depois fiz o outro. É como se eu tivesse feito o filme duas vezes, uma vez como o Nelson, e outra vez como o Velho. Eu comecei com o Nelson, que ficou forte. Aí eu voltei para o zero, e construí o Velho. Foi bom começar com o Nelson, porque ele desbunda logo. Depois dele, eu já estava íntimo da equipe, dos meninos. Quando chega ao personagem do Velho, que é mais sombrio, eu já estava engatado no ritmo das filmagens".
Cláudio Assis: "Big Jato foi filmado em três semanas, e chovia muito. Você não tem ideia como sofreu a equipe da pesada, o pessoal da maquinária para carregar equipamentos na chuva. Em três semanas, foi uma coisa de louco, porque a gente não tinha dinheiro. O início do filme [as imagens caleidoscópicas do peixe de pedra] foi feito in loco, em 35mm. Aquilo não é efeito de laboratório. A gente partiu para a fábula, para o sonho do Príncipe Ribamar, o Jards Macalé... Ele é como um sonho do menino. Esses elementos ajudaram a alimentar o tom de fábula".
Reunindo a equipe
Matheus Nachtergaele: "Marcélia é minha velha companheira. Nós fizemos juntos a peça Woyzeck, do Büchner, e ela foi minha Maria. O teatro cria uma intimidade enorme entre os atores. A gente passa horas juntos, meses ensaiando, e depois meses se encontrando todas as noites para viver aquilo. Então somos amigos íntimos. Com as crianças, é sempre uma novidade, um momento para ganhar frescor, porque se você entrar com muitas normas e coisas preconcebidas, eles não conseguem acompanhar. Você tem que ensiná-los libertando. Acho que o Cláudio conseguiu fazer um filme sobre a transmissão do amor".
Marcélia Cartaxo: "No Baixio das Bestas, eu preparei o elenco, e fiz uma participação pequena, como aquela prostituta maravilhosa que eu amo. Já deu para curtir o trabalho de Cláudio Assis, que é muito irreverente, mas desperta grande responsabilidade. Quando ele me ligou para o Big Jato, eu pensei que fosse trote! Existe uma concorrência muito grande entre os atores para trabalhar com ele... Depois ele ligou de novo, e aí acreditei.
Matheus já tem a mistura de drama e comédia na veia. Ele consegue estar nos dois lados naturalmente. Eu já conheço o tempo dele, e a energia dele: quando tem que fazer um personagem que dá um tapa, ele dá um tapa de verdade! Quando eu me juntei às crianças, eu disse: 'Olha, já conheço o trabalho de Matheus, e vamos precisar correr atrás para ele não engolir a gente!'. Trabalhamos nesse sentido, passando tempo juntos para construir a história tragicômica. Assim como A Hora da Estrela era tragicômico, esse aqui também fica entre o popular e o artístico".
2x Matheus Nachtergaele
Cláudio Assis: "Matheus não é bom, ele é gênio. No começo, eu queria colocar Matheus e João Miguel para interpretarem o mesmo personagem, enquanto Irandhir Santos e Júlio Andrade deviam interpretar o outro personagem. Mas os caras não tinham agenda, nem eu tinha dinheiro pra pagar. Aí, ao invés de fazer quatro atores em dois personagens, eu fiz dois em um! Foi um trabalho do caralho pro Matheus. Mas eu tinha o direito de sonhar: imaginar ter esses quatro atores top? O pessoal vai achar que eu sou muito metido..."
Matheus Nachtergaele: "A ideia de interpretar dois personagens foi amadurecendo. O Cláudio buscava atores parecidos fisicamente. Depois não dava mais, e tinham que ser dois atores diferentes, e sempre se discutia se eu seria o Velho, ou o Nelson. Lembro do Claudão me ligando: 'Você vai ser o Nelson! Ele é mais engraçado! Como você sempre faz personagens pesados nos meus filmes, vamos nos divertir'. Depois ele ligava: 'É melhor o Velho, porque ele é mais difícil'. Depois chegou a ideia de eu interpretar os dois. Isso faz sentido: eles não deixam de ser o mesmo cara. Os dois são o exemplo masculino do Xico, e nunca estão juntos. Vendo como poesia, este é o homem, duas partes de um mesmo homem".
O rabugento Velho x o libertário Nelson
Matheus Nachtergaele: "O Nelson parece alegre e divertido, mas ele é cheio de defeitos, e mostra o seu egoísmo ao longo do filme. Enquanto isso, o Velho, que é tão machista, tão careta, é um homem cheio de princípios, um homem transmissor de amor, apesar da ignorância. De certa maneira, as pessoas vão amando o Velho e rejeitando o Nelson. Talvez o Nelson tenha defeitos demais, e talvez o Velho, apesar de ser tão careta, acredite, na sua ignorância, que aquilo é o melhor para todos. Ele realmente sustenta a casa com merda. Os dois são lindos. Eu até me arrepio! Mas eu fico cansado, é claro. Quando acabou o filme, estava exausto.
O Velho tem um humor requintado e o Nelson tem uma tristeza requintada. Eu ainda não tinha visto o filme, e quando assisti [no Festival de Brasília], percebi como o Nelson era triste. Quando ele fala com os meninos, ele está quase implorando para o garoto ir embora. Ele é de uma tristeza escondida".
Beatles ou Betos?
Cláudio Assis: "Com o orçamento do filme, não daria para pagar um minuto de música dos Beatles. Como fazer? Do jeito que eu sou, eu pensei botar mesmo assim, ou fazer um plágio! Mas o filme nunca ia passar... O livro inteiro fala dos Beatles, não existem os Betos. A gente inventou isso, com o DJ Dolores, e foi do caralho. Mas todos que interpretam os Betos são músicos".
Matheus Nachtergaele: "O Nelson é um absurdo! Dizer que os Betos foram abafados para os Beatles brilharem! Eu gargalhava com isso na época! E ele fala da 'morte da japonesa'! Ela nem morreu... O Nelson pensa que, em terra de cego, quem tem um olho é rei. Ele não fala nem português direito, e fala um pouquinho de inglês, então tudo que ele disser, as pessoas vão acreditar. Eu confesso que, apesar de falar inglês, eu também não entendo a maioria das músicas em inglês, porque são muito rápidas. O Velho também canta, de maneira diferente, enrolando...".