Com seu drama Fome, sobre um morador de rua interpretado por Jean-Claude Bernardet, o diretor Cristiano Burlan despertou uma calorosa salva de palmas no Festival de Brasília. Mesmo assim, o cineasta de Mataram Meu Irmão e Hamlet afirmou aos jornalistas que não estava contente com a mixagem de som, e quase abandonou o filme de "vergonha" durante a projeção.
Em entrevista exclusiva ao AdoroCinema, Burlan falou sobre a origem deste projeto singular, justificando a presença de "imperfeições" e falando sobre a direção como uma partitura ou uma coreografia, ao invés de um roteiro preciso. O cineasta aproveitou para criticar o "aburguesamento dos meios de produção", que afetam principalmente os grandes filmes nacionais. O ator e co-roteirista Henrique Zanoni também participou da conversa, assim como Jean-Claude Bernardet:
Como surgiu o projeto de Fome?
Cristiano Burlan: É sempre difícil dizer. Eu trabalho muito com sensações. São três coisas muito importantes: a minha relação com a cidade, a vontade de trabalhar com Jean-Claude Bernardet como protagonista, e por fim a presença dos elementos invisíveis de São Paulo. Mas não foi nada organizado, isso foi surgindo, a partir de uma ficção.
Vocês não tinham um roteiro preciso, cena a cena?
Cristiano Burlan: Não, seria desperdício de papel!
Henrique Zanoni: Lá atrás, tinha esse livro de um sueco, Knut Hamsun, chamado Fome. Lemos o livro, e começamos a conversar. O roteiro partiu do momento em cena: conversamos antes, mas quando chegou a hora, captamos o que estava acontecendo. Mas estamos há seis meses trabalhando no roteiro juntos, por assim dizer, conversando. Na hora de filmar, criamos.
Cristiano Burlan: Eu não trabalho com roteiro, mas com escaleta. É algo que gera até um storyboard, não definitivo, mas com ideias gerais da cena. Oferecemos esse material aos atores, e eles improvisam a partir disso. É como uma partitura para eles tocarem.
Na hora de apresentar o filme, Jean-Claude, você falou que Fome se inscreve em uma longa trajetória de obras sobre a deambulação.
Jean-Claude Bernardet: Isso me apareceu ontem à noite. Em geral, eu não falo antes do filme, e ontem o Cristiano pediu para eu falar. Na hora, um amigo sugeriu que eu dissesse que o personagem anda. Surgiu essa ideia, que é uma tradição cinematográfica. Foi isso. Nunca tinha falado sobre isso antes.
Cristiano Burlan: Tinha sim! Nosso primeiro filme com o Henrique, que faz parte de uma tetralogia, se chama Sinfonia de um Homem Só. O Jean-Claude já tinha visto e falado neste conceito de deambulação, porque tem uma cena que o personagem anda durante 14 minutos, e a câmera só acompanha. Depois, fizemos Amador, e o Jean-Claude tem uma participação pequena como ele mesmo. O Henrique faz o papel de um cineasta que vai visitar o crítico e pergunta o que é cinema. Aí ele fala sobre deambulação, e da fotografia do Aloysio Raulino. O que o Jean-Claude falou é muito apropriado. Ele se lembra de ter passado seis dias caminhando.
Como você definiu este personagem? Por um lado, ele é fictício, mas por outro, também é um acadêmico do cinema, como você.
Jean-Claude Bernardet: Eu não tenho nada a ver com isso. É coisa do Cristiano! Na cena [em que se anuncia que o mendigo era professor de cinema na USP], de repente apareceu esse sujeito, o [crítico de cinema] Francis Vogner, dizendo que era meu aluno. Só antes o Cristiano tinha dito que haveria alguma cena com o Francis. Não sabia de mais nada. Isso não é um personagem, é uma construção do diretor. Poderia não ter essa cena, e sim outras que foram filmadas, e acabaram não aproveitadas.
Cristiano Burlan: Essa é uma discussão muito pertinente sobre uma crítica institucionalizada, do jornal impresso, com resistência à crítica da Internet. É como se o crítico de jornal tivesse maior capacidade, e se a crítica não fosse necessária. O Francis já está neste momento de ator, e antes, ele era muito resistente ao Jean-Claude. Ele era contra a academia e esse tipo de preconceito. A gente estava em um festival em Belo Horizonte...
Henrique Zanoni: Não, foi em Tiradentes!
Cristiano Burlan: Isso, na Mostra de Tiradentes. Lá, o Francis fez uma entrevista com o Jean-Claude, que achava um dinossauro, mas a relação deles já estava próxima. O Jean-Claude é uma pessoa amada e odiada por muitos. Eu respeito quem tem muitos inimigos. É uma pessoa do passado, dentro do seu próprio tempo. Queria encontrar esses ecos: não é possível ver o Jean-Claude em cena e acreditar que não é ele, eu não posso enganar ninguém. Acho simplista definir as coisas entre biográfico e autobiográfico, entre verdade e mentira. A questão não é de ter um bom ator ou não, um crítico ou não. Mas é uma cena arriscada, porque destinada a um nicho.
Henrique Zanoni: Eu tinha essa dúvida antes. Não sabia se a cena daria certo com o público, mas na exibição no festival, percebi que a cena tem uma tensão e um carisma dos dois que se comunica com todo mundo. Hoje, já acho que qualquer um que assistir pode se identificar com este professor e este crítico, mesmo sem saber quem são os atores.
Fome se destaca porque mistura alguns elementos realistas, como a câmera na mão e os planos longos, com outros artificiais, como a fotografia cuidadosíssima em preto e branco.
Cristiano Burlan: Primeiro, esse é um filme pobre, em vários aspectos. Isso não é uma desculpa. Se eu quisesse fazer um filme bem acabado, eu entraria num edital, pegaria R$10 milhões, que algum dia eu conseguiria, e faria um filme tecnicamente perfeito. Nesse momento da minha vida, não estou preocupado com isso. É claro que corro um risco. Quando apresento um filme com irregularidades técnicas, às vezes eu não chego ao lugar onde queria.
Mas nós esquecemos algo da história do cinema brasileiro e latino-americano: a falta de recursos não pode ser desculpa para filmes menores, e nossa estética está ligada a isso. O cinema brasileiro vive um momento de aburguesamento dos meios de produção. Como se justifica usar R$2 milhões ou R$3 milhões para fazer um filme dentro de um apartamento? Não estou dizendo que não precisa ter dinheiro, mas é necessário rever esses valores. Será que é normal, em um país onde 80% das pessoas vivem em estado de pobreza, pegar R$3 milhões do dinheiro público para filmar dentro de um apartamento? Não estou dizendo que há desvios, nem nada do tipo. Mas é preciso rever esses valores.
O filme tem uma pobreza técnica que eu não escondo. Estou muito mais interessado na verossimilhança do que na dramaturgia impregnada pelo inconsciente do audiovisual televisivo, com o ator técnico que interpreta para convencer. O Jean-Claude não é ator nos moldes convencionais. Ele me disse: “Não sou um ator, sou um performer”, e aí pensei que o performer seria um bailarino. Não queria que ele atuasse, mas dançasse para a câmera.
Cristiano Burlan: Fui a Estocolmo no ano passado para estudar a relação de Bergman com o teatro. Em Fanny e Alexander, ele passou quatro horas dirigindo doze atores. Mas não dirigindo: coreografando. Em nenhum momento ele fala de objetivas, de preparador de elenco, nada disso. É uma relação entre a lente e o objeto, o corpo a ser filmado dentro de um espaço fílmico. É um desejo de fazer as coisas de maneira diferente, não para ser original.
Entendo o que você fala sobre o real, o artifício, mas as coisas não são tão mecânicas. Para mim, é mais simples: estou filmando um bailarino, com uma coreografia, e a minha câmera o segue. Dá para perceber quando a câmera é orgânica, ou quando ela é estetizada, com o plano se impondo à cena. Isso é o devaneio e a vaidade do diretor.
O que eu aprendi, a partir do documentário Mataram Meu Irmão, foi esquecer o que aprendi na faculdade de cinema, para abandonar minhas vaidades estéticas. Mas dá para sofrer no cinema: você passa de um 5.1, em Cinemascope, e vai para um formato menor... Eu queria fazer algo mais perfeito tecnicamente, mas não posso sofrer, porque sei que o que é ruim e não funciona está presente, mas o que funciona é potente. É humano. Isso é difícil de conseguir, e independe do dinheiro, da experiência.