A primeira noite da mostra competitiva do Festival de Brasília 2015 trouxe a exibição do filme A Família Dionti, de Alan Minas. A história apresenta um garoto que vive com o irmão e o pai no interior de Minas Gerais, enquanto sofre com a ausência da mãe. À medida que descobre um novo amor na escola, ele percebe que está literalmente derretendo.
Em conversa exclusiva com o AdoroCinema, o cineasta explicou o funcionamento do realismo fantástico, falando sobre a busca da pureza da infância. Ele qualificou a falta de filmes infantis nos cinemas como um "desrespeito" e citou suas referências, de Emir Kusturica a Guimarães Rosa. Confira:
Como surgiu a ideia de A Família Dionti?
Um dia, me veio a imagem de um menino do alto, e de uma cidade pequena. Normalmente, anoto as minhas ideias no papel, ou no computador. Mas neste caso, eu nem anotei. Meses depois, eu ficava pensando: “Ele está no alto de uma montanha? Ele é um anjo? Não, ele não é um anjo”. Mas ele estava nas nuvens. Pensei que ele poderia ser um elemento, ele poderia ser a nuvem. Aí surgiu essa história do menino que se derrete de amor. Gosto de histórias que falam sobre transformação, principalmente do realismo fantástico.
Mesmo assim, o uso de efeitos especiais é discreto e pontual.
A gente sabe que é possível, tecnicamente, fazer todos esses efeitos. Conversando com o pessoal da finalização, eu sabia que poderia realizar todos os efeitos que eu quisesse. Mas não gosto de revelar tudo. Prefiro quando o cinema sugere algo, e o espectador completa a cena. A questão é: quando usar os efeitos, e quando não usá-los? Eu monto um quebra-cabeças e convido o espectador a completar as peças que faltam. Desta forma, o público faz cinema também. Vamos fazer cinema todos juntos!
Mas o foco continua sendo o público infantil.
No realismo fantástico, sempre vemos o universo infantil. As pessoas pensam que, quando se fala em mentiras, o público é necessariamente a criança, mas o adulto pode gostar também. Adoro os filmes do Emir Kusturica, com aquela loucura toda. Mesmo para a criança, não é preciso tocar um sininho, indicar onde é mentira. Acho que podemos combinar verdade e mentira; a criança não tem problema para transitar entre esses registros. A criança, o poeta e louco possuem essa lógica. Infelizmente, a gente desaprende conforme amadurece, mas o primeiro olhar da criança é absorvido sem equacionar, de modo novo. Meu grande desejo é resgatar esta lógica da infância, esta pureza. Não penso na ingenuidade, mas corro atrás da pureza do primeiro olhar.
Você propõe várias transformações na história entre o homem e a natureza. Um personagem vira flor, outro vira nuvem, um terceiro cospe abelhas...
Quando escrevemos, algo vem intuitivamente. A questão dos elementos da natureza não foi programada: isso está dentro de mim. Analisando desde o primeiro argumento, reconheço o que tem de mim em todos os personagens e percebo como funciono bem quando estou conectado à natureza. Enxergo nessas fontes naturais a possibilidade de renovação. Existe a questão da terra, que é um dos meninos, e a água que representa o outro. O pai deles trabalha com tijolo, que é terra e água: ele é uma mistura, um conflito.
A figura do sertanejo já foi muito explorada no cinema brasileiro e na literatura. Quais foram as suas referências?
Eu me recordo de ir ao cinema ver filmes do Mazzaroppi. Fui criado no interior de São Paulo, em Aparecida do Norte, então passava dois meses de férias na casa dos meus avós. Tinha um velho cinema de rua, onde se formavam filas enormes para os filmes do Mazzaroppi. Eu tenho consciência de lidar com um inconsciente coletivo. Vai demorar para alguém não reconhecer o Mazzaroppi, ou o Jeca Tatu, porque estão muito fortes no nosso imaginário. Mesmo assim, minha grande referência foi Guimarães Rosa. A primeira vez que li Grande Sertão: Veredas, fiquei deslumbrado, descobri muitos pontos de humor. O sertanejo tem um jeito prosaico de falar, um humor próprio.
Uma preocupação pessoal, quando assistia ao filme, era encontrar uma imagem ingênua, tola, do homem sertanejo.
Eu tive muitas preocupações. É o fio da navalha: você está falando de realismo fantástico, de um garoto que derrete. Como construir uma fala doce, mas ao mesmo tempo profunda? Como as pessoas vão reagir? Confesso que isso ainda está muito novo, o filme estreou ontem, estou começando a ter essas respostas. Eu nego a ideia da ingenuidade do filme. Acredito na busca da pureza, do melhor possível, mas isso não é ingênuo, não é um olhar poliano. É simplesmente falar de amor, de sentimento, de transformação. Quando sinto o que me moveu a escrever esta história, percebo que o filme não está no campo de melodramático, do apelativo, da ingenuidade. Estou falando de uma força universal, poderosa. Eu preciso embarcar de cabeça nesta história: eu acredito nela e nos personagens.
Os filmes infantis são raros no cinema nacional recente, com exceção do sucesso de Carrossel - O Filme. Como vê o mercado existente para o gênero?
Sempre vai existir interesse, mas não se permite criar mais filmes do gênero. É muito ruim não ter uma linha de fomento ligada à infância. É um tiro no pé. Não é questão de fazer juízo sobre o tipo de trabalho feito para as crianças. É preciso ter uma linha de fomento para o filme infantil, para a animação, como acontece em outros países. Precisamos cuidar, enquanto indústria, da nossa futura plateia. Acho bacana os canais infantis e o sistema de cotas, mas o olhar ao universo infantil ainda é incipiente. Existem preconceitos de que o conteúdo infantil tem que ser banalizado, idiotizado, ligado ao comércio. Perguntam: “Vai circular por outras plataformas? Vai virar produto na Internet?”. Senão, já barram desde o roteiro. É uma falta de respeito, isso traduz como vemos a infância. A gente esquece que são as crianças que vão ao cinema daqui a cinco, dez anos.
Leia a nossa crítica de A Família Dionti.