O diretor Geneton Moraes Neto apresentou no Cine Ceará 2015 o documentário Cordilheiras no Mar: a Fúria do Fogo Bárbaro. O público que já conhecia a filmografia de Glauber Rocha descobriu o lado político do artista baiano, incluindo depoimentos de dezenas de diretores e personalidades do cenário cultural brasileiro, como Cacá Diegues, Caetano Veloso, Carlos Heitor Cony, Arnaldo Jabor, Paulo César Pereio...
O diretor conversou em exclusividade com o AdoroCinema sobre este projeto. Muito amigável e franco, ele explicou as suas escolhas estéticas para o projeto, comentou a atual situação política nacional e destacou as dificuldades de fazer cinema documentário no Brasil. Confira:
O cinema brasileiro já fez dezenas de filmes sobre Glauber Rocha. Quais novidades você pretendia trazer ao projeto?
A esquisitice deste filme é ser um filme sobre Glauber Rocha, mas que não trata de cinema. É sobre política, e sobre o Brasil. O processo foi longo, complicado e muito pessoal. Só tem sentido fazer cinema se for algo minimamente pessoal, e se você enxergar a chance de fazer filmes como a oportunidade de realizar a sua loucura, o seu sonho. Recentemente, eu vi uma entrevista do Eduardo Coutinho, dizendo que só vale a pena fazer um documentário se você botar na cabeça que aquela entrevista gravada quarta-feira, às duas horas da tarde, no sertão da Paraíba, é um caso de vida ou morte. Você precisa criar uma necessidade vital!
Quem olhar de fora pode achar ridículo: ninguém me pediu para fazer esse filme sobre Glauber Rocha. Se eu não tivesse feito, não faria nenhuma diferença para o resto da humanidade. Mas eu me convenci de que tinha que fazer esse filme de qualquer maneira, porque tal situação com tal entrevistado nunca iria se repetir. É preciso captar aquilo desesperadamente!
O resultado é bastante radical.
Para mim, não tinha sentido fazer um documentário em forma de pastiche, como uma matéria de televisão. Eu decidi correr riscos, me aventurar em certas coisas. Mas a escolha dos atores não foi casual: o Paulo César Pereio aparece em Terra em Transe, a Ana Maria Magalhães está em A Idade da Terra... Decidi fazer aquilo com os textos que escrevi, num tom meio operístico, meio exaltado. É impossível fazer um filme sussurrado sobre Glauber Rocha, sobre o Brasil. Não daria para ser algo tipo bossa nova, com todo o respeito! Precisava ser incendiário! Os depoimentos também não foram casuais, e nem dizem “Eu acho...” As pessoas relatam o que viram, ouviram, com certeza. Essa era uma preocupação desde a captação até a finalização.
Você escolheu retratar apenas pessoas que concordam com a posição política de Glauber. Por que não incluiu vozes contrárias?
Algumas pessoas reconhecem que, na época, não concordavam com o Glauber, nem entenderam naquele tempo o posicionamento do Glauber. Ele enxergou na frente de todo mundo, e historicamente, ele estava certo. O Brasil estava em um impasse dramático no final do governo Médici e no início do governo Geisel. A luta armada, eventualmente bem-intencionada, tinha dado errado. As pessoas estavam se matando... Hoje a gente precisa perguntar: a gente vai continuar se matando, ou vai buscar brechas?
O filme não é uma apologia a Glauber Rocha, mas acho que fica claro que ele enxergou na frente dos outros. Dá para ver um mea culpa do Cacá Diegues na época... Cordilheiras no Mar: A Fúria do Fogo Bárbaro funciona como um pequeno comício contra as intolerâncias.
Qual é a relevância de apresentar um filme tão corrosivo no atual cenário político brasileiro?
Infelizmente, o filme ganhou uma atualidade inesperada. Hoje, em uma democracia total, estamos vivendo uma época de intolerância, de radicalismo. É um motivo a mais para celebrar o pensamento de Glauber Rocha. Não se pode enxergar um país completo e fascinante como o Brasil de maneira tão banal, com briguinhas entre PT e PSDB. Se alguém acha o Fernando Henrique simpático, dizem “Então você é de direita!”, ou se dizem que acham a Dilma bonitinha, lá vem um “Então você é um bandido!”.
Isso é muito pequeno. Enquanto isso, o Brasil merece um debate muito maior, inclusive para as gerações que vêm depois. Não se pode abandonar o sonho que moveu o Brasil durante gerações. Ariano Suassuna dizia: “O Brasil não pode se conformar em ser uma cópia de terceira categoria dos Estados Unidos”. Vamos virar o quê? Uma grande Miami?
Quanto ao estilo do filme, você optou por se concentrar nos depoimentos. Existe uma verdadeira paixão pelo texto e pelas palavras.
É talking heads! Eu sabia que seria meio “cabeças falantes” mesmo. Não pensei em fazer muito malabarismo formal. É quase como se eu estivesse me desculpando, para bajular o espectador. Em Cordilheiras no Mar: A Fúria do Fogo Bárbaro, eu cheguei ao limite do que poderia fazer. Nas primeiras versões, tinham mais de duas horas de filme, depois baixei para 1h50, terminou com 1h38. Não dava para cortar mais, eu já tinha chegado no supra sumo das entrevistas. Este filme não vai passar no circuito comercial: ele vai passar pelos festivais, depois vai ao Canal Brasil, então quem quiser ver, vai ver, quem não quiser ver, pode sair, desligar a TV ou ver a Xuxa.
Mesmo assim, eu tinha uma preocupação de ritmo, queria evitar algo soporífero, por isso mantive o tom épico, onírico. Como nas cenas do Palácio do Catete, com os corredores vazios até chegar no Getúlio Vargas... Do mesmo modo, o parque Lage foi escolhido tanto pela beleza do lugar quanto pela citação indireta a Terra em Transe. Além disso, foi lá o velório do Glauber Rocha.