Depois de tantas comédias aclamadas, o diretor Jorge Furtado apresentou no Cine Ceará 2015 o seu primeiro drama: Real Beleza, estrelado por Vladimir Brichta, Adriana Esteves e Francisco Cuoco. Na trama, um fotógrafo parte ao sul do país em busca de uma nova modelo fotográfica, e acaba tendo um romance com a mãe da garota escolhida.
Furtado comentou essa guinada para o drama: "Eu tento fazer com que todos os filmes sejam diferentes do anterior", garante. E insistiu: "O artista deve fazer aquilo que não sabe". Bem-humorado, também brincou com a dificuldade de lançar dramas no circuito brasileiro, na época em que as comédias dominam o mercado. "Pensei em colocar no cartaz: 'Com os mesmos dubladores de Minions!'", já que Brichta e Esteves participam da animação americana.
Brincadeiras à parte, o diretor conversou em exclusividade com o AdoroCinema sobre esta experiência dramática, e sobre a ideia de "real beleza" presente no filme. De quebra, aproveitou para lançar uma forte crítica a algumas comédias recentes. Confira:
A primeira cena de Real Beleza é surpreendente: o protagonista dá um forte tapa na cara de uma modelo. É um desafio para o espectador se identificar com ele depois dessa cena.
A carreira dele recomeça por causa disso. Ele era um fotógrafo de moda importante, rico, poderoso, e vai ter que recomeçar catando modelos no Rio Grande do Sul, porque se queimou em uma cena, quando estava mal e agrediu uma modelo. Ela, ao revidar, ainda destrói um quadro... A primeira cena é a queda dele, e a sequência é a reconstrução. Eu tentei fazer um filme em que as coisas não ditas fossem importantes. A gente não sabe o que eles estão pensando, e ficamos imaginando. Boa parte do roteiro é feita na cabeça do espectador.
O título é interessante. Não é apenas "a beleza", mas a real beleza...
Existe a discussão sobre a hierarquia entre belezas. O que é a real beleza? O nome já é um desafio. A busca do personagem do Vladimir Brichta é essa beleza diferente da publicidade, da fotografia, que é facilmente manipulável. Tudo pode ser transformado numa aparente beleza, mas existe uma beleza real. Essa beleza pode ser visual, afetiva, algo da ação, do gesto, da entrega, da memória, da palavra... Existem muitas formas.
O Pedro nunca consegue definir o que ele busca entre as centenas de candidatas a modelo.
Ele não sabe muito bem. A gente não sabe o que é, mas entende. A personagem cita Guimarães Rosa: “A gente só sabe bem aquilo que não entende”. Essa fala define um pouco a beleza: a gente sabe o que é, mas não entende o porquê. Pensa na música, por exemplo, que é uma forma de arte totalmente abstrata – aliás, todas as artes aspiram à condição da música, que é pura forma. Por que um acorde específico é bonito? Existe um documentário muito bom sobre Tom Jobim, no qual ele mostra um acorde ao piano. Depois ele muda um pouquinho. No terceiro acorde, fica lindo. Mas ninguém sabe o porquê...
O drama fala sobre belezas, usando diversos símbolos clássicos das artes. Como você escolheu essas referências?
O filme é um acúmulo de referências de beleza: poemas do Fernando Pessoa, tem Shakespeare, tem Borges, tem Guimarães Rosa, tem a fotografia, com a longa descrição de uma foto do Cartier-Bresson, tem a música, a ópera, tem Sérgio Sampaio, tem Wally Salomão e Jards Macalé, tem o desfile daquelas garotas bonitas... Neste labirinto de belezas, o personagem procura uma beleza real. Assim ele se transforma: ele passa a aceitar de outra maneira a beleza e o mundo.
Como diretor, quais preocupações você teve na hora de criar imagens sobre a beleza? Houve uma pressão maior para atingir o belo?
A escolha daquele cenário, da paisagem, dos móveis... Tudo foi pensado, incluindo os enquadramentos (em scope, aquele formato comprido). Como eu trabalho muito em televisão, quando estou no cinema, eu busco fazer algo que não seria possível fazer na TV. Esses dias, eu revi O Leopardo, e achei lindo. Como a beleza é comovente, quando você vê a Claudia Cardinale entrando naquele baile, com aquele vestido... Procuramos o tempo inteiro colocar a beleza no filme.
Mas Real Beleza nunca é um filme estetizante.
É verdade. Às vezes a gente vai ver um filme e parece que cada imagem teve um storyboard, que ficaram horas pensando... Existe certo cinema americano muito publicitário, e consequentemente, existe um cinema brasileiro assim. Nenhum cinzeiro está fora do lugar, nenhuma flor, tudo está corretinho. Mas não quisemos fazer isso: a ideia era ter um cenário bonito, mas sem detalhes estetizantes.
Você citou a ironia de fazer um drama na época em que as comédias estão dominando o mercado. O que pensa da safra atual de comédias populares?
Adoro comédia, sempre fiz, e não tenho nada contra. Mas há comédias e comédias. Existem grandes comédias, como Quanto Mais Quente Melhor, os filmes do Monty Python... São filmes duráveis. O poeta romano Cícero dizia: “Existem peças para ver uma vez só, e peças para ver várias vezes”. Existem filmes assim também. Alguns filmes são descartáveis, e outros parecem melhores a cada vez. Eu acabei de rever O Poderoso Chefão, que é incrível. Ladrões de Bicicleta também é assim.
Se você faz um filme, precisa pensar nessa questão. Cinema é tão difícil, tão demorado, tão caro, que é preciso fazer algo que dure mais que um verão. O problema de algumas comédias é serem muito descartáveis, com piadas fáceis. Não sei fazer piadas preconceituosas, com gays, vibradores, gordas, anões... Ainda mais no cinema! Tanta produção, tanto ensaio para aquela besteira? É um desperdício. Procuro fazer filmes mais duráveis.