O frio de Curitiba não é capaz de arrepiar o jovem casal de realizadores brasileiros Guto Parente e Ticiana Augusto Lima, naturais de uma sempre ensolarada Fortaleza. Em 2012, eles embarcaram em uma pequena aventura para a França, para a pequena cidade de Chalon-sur-Saône, a fim de fazer um mestrado em cinema na escola de artes Ema Fructidor.
Ele não chegou a concluir o curso, o que não quer dizer que foi viagem perdida. Se percebendo estrangeiros em terra, de fato, estrangeira, os dois acabaram por adotar involuntariamente um isolamento criativo cujo primeiro resultado é o longa (de pouco mais de uma hora) A Misteriosa Morte de Pérola, o único brasileiro selecionado para a mostra competitiva do 4º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba. Exibida no último Festival de Tiradentes (MG), e também no Janela de Cinema (PE), onde a obra levou o prêmio João Sampaio para Filmes Finíssimos que Celebram a Vida.
Mas o mais correto seria dizer a Morte. Pérola (Ticiana) é uma jovem que decide estudar na França. Lá, passa a morar sozinha em um casarão um tanto quanto sombrio. Até que a morte anunciada do título acontece, misteriosamente. Na sequência, um homem (Guto) se desloca para o mesmo apartamento e parece realizar experimentos com o objetivo de reconstruir os passos da falecida. E os dois cineastas assumem praticamente todas as etapas de realização do filme.
Qualquer semelhança não é mera coincidência.
Além de reproduzir, em um certo grau, a experiência de isolamento pela qual os dois passaram, o filme foi todo rodado no apartamento onde eles moraram na cidade europeia. "A minha primeira cinefilia é a Sessão da Tarde, de cinema de gênero americano", confessa Guto, hoje aos 31, que, na época da viagem vivia sob forte influência do terror italiano de Mario Bava e Dario Argento.
Influência, não cópia. "O cinema de gênero vem de uma matriz comercial, com seus códigos com os quais o espectador já tem uma relação preestabelecida. O que me interessa é pensar a utilização desse códigos, deslocá-los de um modo em que você consiga envolver o espectador por conta dessa familiaridade, e, ao mesmo tempo, levá-lo pra um lugar que não seja o que ele está esperando", explica Parente.
E é nessa ressignificação que ele tem focado o trabalho, um tipo de cinema comumente chamado "de autor". Sem graduação na área, ele foi aluno da primeira turma da escola de audiovisual da Vila das Artes, de Fortaleza, que tem como princípio um ensino voltado para a experimentação de linguagem. Ticiana, que estudou cinema como graduação, foi aluna da segunda turma. Hoje, ele integra o elogiado coletivo Alumbramento - que completa dez anos em 2016 - e ela montou a produtora Tardo.
Reeducação do olhar.
Segundo a dupla, o filme anterior que eles lançaram, Doce Amianto, que já dialogava com o cinema de gênero e estreou em circuito reduzidíssimo, teve entre 700 e 800 espectadores, apenas. "É muito caro ir ao cinema para ver alguma coisa assim. Você tem que ter uma reeducação do olhar para aceitar um plano que dura cinco minutos ou então uma outra lógica que você não vai ter respostas [fáceis]. O espectador comum vai ficar com raiva", diagnostica Ticiana, que exemplifica: "Meu pai viu o [Estrada para] Ythaca [o primeiro filme do Alumbramento] no Canal Brasil e reclamou 'mas não acontece nada, são quatro homens, parados...'"
"Se tivesse algum tipo de política, alguma coisa que possibilitasse você ter filmes independentes lançados a R$3,00... Eu não quero que ninguém page R$30,00 para ver o meu filme. Porque eu não quero pagar R$30,00 para ver nenhum filme", remedia Guto.
A Misteriosa Morte... ainda não tem data de estreia, mas deve será distribuído pela própria Alumbramento - em princípio, em Fortaleza, Recife e Belo Horizonte.
Comer, comer.
Com inúmeros (acredite, são muitos) projetos para os próximos anos, Guto e Ticiana estão prestes a dar à luz a um projeto também concebido no isolamento criativo da França. Em 2016, eles começam a rodar (ele, como diretor; ela, produtora, novamente) a comédia de humor negro Clube dos Canibais, a partir de um roteiro escrito lá por Parente.
"Resumindo bem grosseiramente, é a história de um casal que faz parte da alta sociedade cearense, da elite, que tem o hábito de comer os empregados", explica Guto. "Mas, comer como?", pergunta o inocente repórter. "Comer [Ticiana faz gesto de mastigação] e comer".