Na tela: ruas, paredes, telhados, cadeiras, pessoas, hotéis, letreiros, uma gaivota, o mar; arbustos, palmeiras. Um típico registro de férias (no caso, no Marrocos, especificamente na cidade de Essaouira). Não muito diferente do que eu ou você filmamos quando viajamos. Aliás, diferente, sim, na medida em que estamos falando de 1973, quando as câmeras digitais (e os smartphones), obviamente, ainda não haviam sido inventadas, para o bem ou para o mal.
Então, o que justificaria transformar tais imagens aleatórias em filme, para ser exibido no cinema? Acontece que as mãos por trás da Super-8 que filmavam na década de 1970 atendiam pelo nome de "mãos de Glauber Rocha", o mais importante e cultuado cineasta do Cinema Novo.
"Eu nunca imaginei que pudesse haver alguém interessado nessas imagens", diz a dona do acervo, a cantora nova-iorquina radicada em Curitiba Mossa Bildner, que guardou carinhosa e despretensiosamente o material (transposto, inicialmente, para VHS, depois para DVD), durante mais de 40 anos.
O primeiro a discordar dela foi o jornalista Cristiano Castilho, que descobriu o "tesouro" em uma entrevista com a cantora - namorada de Glauber da época. Outro jornalista paranaense, Paulo Camargo, entrou em contato com a direção do Olhar de Cinema e, voilà, o registro de férias acabou virando o filme acidental A Vida É Estranha, um média-metragem de 40', cuja direção é "de" Glauber Rocha, "com" Mossa Bildner, que teve pré-estreia "mundial" na última sexta-feira, dentro da programação do festival.
Glauber faz a barba.
O agora filme começa com as únicas imagens que não foram filmadas pelo cineasta, afinal, quem aparece no centro da tela é o próprio Glauber (esqueça esse "conceito" de selfie). Sacudindo dentro do quadro tremido, com uma jovem Mossa responsável pela captação da cena, Glauber faz a barba em um coiffeur. Sai sorridente e, assim começa A Vida É Estranha.
O que se vê na sequência não é mais "profissional". Imagens tremidas, falta de foco, ausência de luz, rostos de traços indecifráveis. Alguns poderão dizer que o conjunto lembra Matisse, outros certamente vão preferir Van Gogh. Mas tudo não passa de um vídeo caseiro de férias, sem a pretensão nenhuma, à época, de ganhar notoriedade pública, que agora vêm à tona pela associação com o nome de um falecido gênio.
O filme foi todo montado na ordem em que Glauber o filmou, ou melhor, filmou as férias do casal. "A construção do filme é dele. A gente não editou. Só cortamos um trechinho de 30 segundos, que tinha ficado totalmente preto", revelou a experiente cantora/ diretora de primeira viagem (ao Marrocos). "Não achei que era o meu lugar mexer com as imagens na ordem que ele fez", ela revelou, com humildade, no debate após a sessão.
Chapéu de esfregador com jogo de Búzios.
Sem narração ou depoimentos, a escolha da trilha sonora pesou mais do que de costume na "adaptação". "O primeiro impulso era o de utilizar músicas da época, como The Doors, Jimmy Hendrix ou Buffalo Springfield, mas aí o pessoal daqui me falou, com razão, que eu teria que pagar direitos autorais", explicou Bildner.
Assim, a maior parte da projeção foi coberta com músicas dos “Gnaoua”, um grupo étnico-cultural descendente de escravos vindos da África subsariana, que lembram os cânticos do candomblé. "Essa coisa que eu tenho cabeça que parece um esfregador com um jogo de búzios em cima é um tipo de chapéu ritualístico que eles usam nas cerimonias", a cantora brincou. A segunda parte musical é baseada em um vocalize (exercício vocal) de uma ária italiana antiga desconstruída. E o terceiro e último bloco de imagens, de caráter mais introspectivo, vem acompanhado de um poema de Clarice Lispector ("Momentos Na Vida") musicalizado - e interpretado - pela cantora/diretora.
Só pensava naquilo.
"A maioria dos papos dele [do Gluber] era sobre cinema, enquadramentos. Naquela época, ele estava muito obcecado por fazer um filme que seria o filme da vida dele, que seria uma história do [escritor norte-americano] William Faulkner, que se chama "The Wild Palms" [lançado no Brasil como "Palmeiras Selvagens" mesmo]. Tem uma cena [em A Vida É Estranha] onde você vê as palmeiras balançando e eu pensei, anos depois, que essa cena poderia ter sido uma indicação. O filme infelizmente, nunca aconteceu", ela lembra.
Mossa Bildner conheceu Glauber Rocha quando ainda estava no "ginásio" (ensino médio). Ele estava com os amigos cineastas na praia de Ipanema, ela o reconheceu e se apresentou. "Houve um clique entre a gente mas não deu em nada", ela se recorda sorridente. O clique só viria a acontecer anos mais tarde, no lançamento de O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969) em Nova York, em uma festa na casa de uma tia dela. "Ficamos a noite inteira batendo papo e você sabe como é..."
O filme é dedicado a Glauber e uma tal "Letícia", uma amiga íntima do casal. "A gente a conheceu em Roma, ela estava namorando a Ângela Rô Rô. A gente convidou a Ângela, na época [para ir para o Marrocos], mas ela não quis. A Letícia, que era uma grande escritora brasileira, morreu muito jovem".
Interesse público.
O cineasta e diretor do festival Olhar de Cinema, Aly Muritiba, envolvido diretamente na transformação do vídeo em filme, justificou a transposição: "o interesse passa pela figura pública do Glauber Rocha, mas passa também pela figura pública que é a Mossa. Ter esse registro guardado durante tanto tempo sem ser compartilhado nos pareceu um tanto quanto despropositado e, como nos tínhamos os meios de tornar isso compartilhado, nos empenhamos pra fazê-lo".
Questionada por uma jovem da platéia sobre a sensação que o agora filme a traz, Mossa falou: "cada pessoa que chega numa certa idade, quando você se vê bem mais jovem, fica um pouco chocada, não é? Como era tão mais inocente aquela época, que não tinha distrações digitais, então a gente tinha que criar aventuras e vivê-las", tascou, com sabedoria, sobre o lado negro da tecnologia.
Como escreveu Clarice Lispector, "a vida não é de se brincar porque um belo dia se morre". E que bela vida teve Mossa Bildner.