Até a última noite da mostra competitiva do Cine PE 2015, os grandes protagonistas estavam, de certo modo, fora das telas do cinema São Luiz. Um dos filmes mais aguardados, o português Cavalo Dinheiro, sofreu problemas técnicos, foi dado como cancelado, mas acabou projetado na noite de 7 de maio, como último filme da competição.
Já a ocupação no cais José Estelita tem sido uma batalha importante nas ruas de Recife, mencionada diversas vezes pelos diretores dos longas e curtas-metragens. Todas as equipes se mostraram solidárias à batalha dos cidadãos contra o lobby das empreiteiras, que conseguiram apoio unânime dos deputados locais para aprovar o Projeto Novo Recife.
Enquanto isso, a noite foi cansativa e variada, com a exibição de três curtas-metragens e dois longas-metragens consecutivos, sem pausa entre os filmes - e com direito aos problemas crônicos de som que têm afetado todo o festival.
Natureza em tensão
O primeiro curta-metragem apresentado foi História Natural, de Júlio Cavani. O diretor retrata a tensão permanente entre o ser humano e a natureza, através de um personagem explorando a floresta ao lado de um jardim zoológico, onde os animais são mantidos em jaulas. Ao invés de se apoiar apenas em reviravoltas do roteiro, Cavani constrói seu discurso crítico pelo uso afiado da linguagem cinematográfica: fotografia, montagem e som estão impecáveis.
Os enquadramentos e efeitos sonoros proporcionam uma angústia e um estranhamento que talvez estivessem ausentes nas mãos de outro diretor, mesmo trabalhando com um roteiro idêntico. História Natural já foi premiado em Gramado e no Cine Ceará, e se destaca como o melhor curta em competição no XIX Cine PE.
Humor incômodo
O curta paulista Como São Cruéis os Pássaros da Alvorada também busca o estranhamento, mas a partir da comicidade. Para retratar a errância de um jovem pela cidade, o diretor João Toledo faz uso de repetições nos diálogos, cortes bruscos no som, simbologias absurdas ou tragicômicas. Enquanto isso, associa o vazio contemporâneo ao sexo, à bebida e às relações familiares. O próprio título se presta a múltiplas interpretações, e não deixa de parecer irônico e cômico em relação ao conteúdo.
Anacronismo
A propósito do vazio contemporâneo, o curta Simulacro também propõe um retrato do homem solitário das metrópoles. O diretor Miguel Moura não faz uso de metáforas e absurdos, como no filme anterior, preferindo simbologias mais gastas: a televisão como veículo de alienação, as propagandas como representante máximo do consumismo. A evolução do personagem principal é coerente, mas Simulacro soa anacrônico. Talvez vinte anos atrás, constituísse uma crítica ousada, mas hoje, este discurso repetito por infinitas obras possui um alcance limitado.
Cinema brasileiro?
Começando a projeção de longas-metragens, o diretor Jeferson De subiu ao palco para defender não apenas a ocupação do Cais Estelita, mas também a ocupação do cinema brasileiro em relação à invasão americana. Ele citou em especial o grande número de salas dominadas por blockbusters como Vingadores: Era de Ultron, usando seu filme, O Amuleto, como exemplo do autêntico cinema brasileiro.
Ironicamente, este suspense aglutina todos os clichês possíveis de filmes de terror B americanos. Os jovens perdidos na floresta, a loira burra e superficial, as seitas satânicas, os fantasmas aparecendo no canto do enquadramento, as imagens amadoras (found footage) revelando a verdade sobre um crime: todos esses traços estão presentes. Não bastasse o roteiro precário e sem sentido, as atuações são fracas, a fotografia é preguiçosa e o uso de efeitos sonoros ofende qualquer espectador que tenha visto outros filmes de terror na vida.
O Amuleto é um filme de qualidade tão baixa que desperta questionamentos sobre como o roteiro recebeu incentivos para ser filmado, e como o resultado final foi selecionado para um festival de cinema. Ao final da sessão, sentado ao lado dos jornalistas, Jeferson De aplaudia euforicamente o próprio filme, assobiando e sorrindo.
Ode aos desfavorecidos
Depois de tantas obras no Cine PE 2015 com dificuldades em retratar as classes pobres (como Alegria, O Exótico Hotel Marigold 2 e Mães do Pina) a mostra competitiva se encerrou com uma obra excepcional, belíssima e muito apropriada no retrato das classes marginais. Cavalo Dinheiro, de Pedro Costa, proporciona uma experiência única no uso de enquadramentos e luz, para retratar a solidão e as tristezas de Ventura e Vitalina, moradores de uma comunidade pobre, e vítimas de problemas médicos. Enquanto conversam sobre suas angústias, entre Portugal e o Cabo Verde, o exército toma conta das ruas.
Os planos fixos e diálogos monocórdios não agradaram a plateia, que esvaziou o grande cinema São Luiz. Entretanto, apesar de ser uma obra hermética e exigente, Cavalo Dinheiro presenteou o público pernambucano com algumas imagens belíssimas, inesquecíveis, e sequências musicais de um lirismo arrebatador. Sem dúvida alguma, o melhor filme de toda a edição do festival.