"Ontem aconteceu uma tremenda sacanagem", afirmou o diretor Lírio Ferreira no Cine PE 2015. Ele se referia à votação secreta do Projeto Novo Recife, que tem despertado diversos protestos na cidade. O cineasta pernambucano ditou o tom da quarta noite do festival, marcada pelos discursos engajados e pela má qualidade do som no cinema São Luiz, que prejudicou todas as projeções. Enquanto isso, fora do cinema, grevistas denunciavam a tentativa de verticalização e descaracterização da cidade, que foi aprovada por unanimidade na Câmara.
Futebol, poesia e política
Lírio Ferreira apresentou o curta-metragem O Poeta Americano, uma tentativa de triangulação entre futebol, poesia e política. No caso, o filme retrata a paixão do poeta João Cabral de Melo Neto pela equipe do América de Recife, enquanto reflete sobre as transformações da cidade - em especial a tão criticada "modernização" praticada pelos dirigentes locais. Usando versos do poeta pernambucano e imagens poéticas de futebol, o projeto comprova a ousadia e o lirismo típicos do cineasta, embora não consiga associar de modo satisfatório a questão política à dupla poesia-futebol.
Ditadura, uma história de terror
"1970, ditadura militar brasileira". O letreiro simples e direto anuncia o suspense familiar O Segredo da Família Urso, curta-metragem sobre uma garotinha descobrindo as estranhas atividades de seus pais. A diretora Cintia Domil Bittar adota as regras dos filmes de terror, com direito a atmosfera pesada graças à fotografia e ao som (enquanto a direção de arte, com figurinos e cenários estampados, beira a caricatura da reconstituição de época).
Sem querer estragar a surpresa da trama, basta dizer que o tal segredo do título é grande, e estranha-se a postura dócil da protagonista diante dele. A cineasta comprova seu conhecimento do cinema de gênero, mas fica a incômoda sensação de ver um período tão real e concreto da nossa História tratado com fantasia e humor - vide a cena da garotinha tomando chá de frutas com um desconhecido...
Na China, tudo é diferente
Até a China confirmou a forte presença das animações no Cine PE 2015. Assim como O Gaivota, esta comédia se destaca não apenas pelos traços "sujos" e expressivos do desenho, mas também pela interessante narração fornecida pelo próprio diretor. Para contar a história de um homem em viagem de negócios à China, o cineasta e narrador Marão adota um tom informal, gaguejando, buscando as palavras e se repetindo, com se estivesse com amigos em uma mesa de bar.
O tom descontraído contribui ao humor eficiente da trama. A plateia pernambucana riu diversas vezes com as anedotas sobre comidas estranhas e costumes diferentes dos brasileiros. No entretanto, o fetichismo da alteridade (que está se desenhando como o verdadeiro tema do festival até aqui) acaba dominando o discurso, mais preocupado em tornar os chineses exóticos do que compreender a cultura alheia.
Pobreza e otimismo
O terceiro longa-metragem apresentado em competição oficial foi o documentário Aqui Deste Lugar, dos diretores Sérgio Machado e Fernando Coimbra. Machado estava presente no festival, junto do produtor Fabiano Gullane e de Natália Coresma Mota, uma das jovens retratadas no filme. O diretor explicou que a ideia de filmar famílias saindo da situação de pobreza extrema surgiu quando fazia pesquisas de locação e elenco para Central do Brasil, de Walter Salles.
Assim, três famílias revelam sua rotina familiar e profissional, impactada por programas de distribuição de renda como o Bolsa Família. O filme é divertido e tem diversos momentos memoráveis, além de conseguir escapar do panfletarismo partidário em que poderia facilmente cair. No entanto, Aqui Deste Lugar evita se aprofundar nas implicações políticas da pobreza, limitando o alcance do discurso.
O XIX Cine PE continua nesta quarta-feira com a exibição dos curtas-metragens Brócolis e Bajado, e os longas-metragens O Gigantesco Ímã e Permanência.