Em meio a tantas estreias desta quinta-feira, o único filme brasileiro que chega aos cinemas é uma opção de qualidade para os cinéfilos. O drama Depois da Chuva traz a história de Caio (Pedro Maia, melhor ator no festival de Brasília) que vive em pleno período de transição democrática no Brasil, após o fim da ditadura militar. Este jovem questionador ainda busca a melhor maneira de mudar o sistema, embora esteja desiludido com a política. Leia a nossa crítica.
O AdoroCinema conversou em exclusividade com Cláudio Marques, que dirigiu o filme junto de Marília Hughes. Em tom amistoso e engajado, Marques toca em diversos assuntos essenciais para a política e o cinema brasileiros, fazendo um balanço da produção nacional a respeito da ditadura, discutindo a produção baiana e definindo Depois da Chuva como "um filme sobre a desilusão da juventude". Confira:
Como surgiu esse projeto?
Eu participei daquele momento. Eu era um adolescente na época, e passei por situações pessoais fortes. Todas aquelas pessoas estavam com os nervos à flor da pele, tudo era muito intenso. Depois, tudo parecia superdimensionado. Mas eu tinha a sensação de estar vivendo algo histórico muito forte. Eu contava isso à Marília (Hughes), que é oito anos mais jovem. Foi ela que percebeu que ali estaria o nosso primeiro longa-metragem.
Vocês buscaram referências em documentos, ou em outros filmes?
Existem documentários, mas nunca achei ficções sobre este momento. O que encontramos são muitos filmes de formação, de transição da juventude, e disso o cinema está cheio. Alguns deles têm um cunho político, como o caso do chileno Machuca. Neste filme, embora o garoto seja mais novo do que o Caio - ele deve ter onze, doze anos - a história também faz uma leitura política com o momento no Chile. Sempre li muito sobre a ditadura e a transição, mas o que guiou o meu roteiro foram as lembranças daquela atmosfera.
O cinema brasileiro já produziu diversos filmes sobre a ditadura, mas nenhum sobre a transição para a democracia. De que maneira o seu filme dialoga com a produção já existente?
Sinceramente, eu acho que Depois da Chuva dialoga pouco com esses filmes. Sempre me questionei o porquê de não fazerem filmes sobre esse período tão importante para o Brasil. O cinema brasileiro teve uma tendência a romantizar o período da ditadura. Isso é compreensível, por um lado, porque se tem muito claro quem é o mocinho, quem é o bandido, e isso leva à construção de heróis. Mas Depois da Chuva não tem romantização. Caio é um jovem interessado, apaixonado, mas não é apresentado como bonzinho, perfeito, acabado. Ele entra em contradições durante o filme.
Embora trate da juventude rebelde, Depois da Chuva não possui as tradicionais imagens de drogas, sexo e rock'n'roll...
É verdade. Esse é o jeito que a gente gosta de trabalhar. A gente se alimenta muito do que encontra, e de quem encontra. Nós fomos ajustando o Pedro Maia ao Caio, e o Caio ao Pedro. Como a gente sabia que a responsabilidade era grande, porque seria o primeiro trabalho profissional de um jovem, e que ele estaria presente em 60% das cenas, nós queríamos que o filme fosse muito confortável para todos. E o Pedro é alguém doce.
Além disso, os clichês são perigosos, é difícil abordá-los, porque podem fazer muito mal ao cinema. Por exemplo, na hora de retratar uma brasileira típica, você pensa numa mulher quente, louca por sexo... Ninguém aguenta mais isso! Essa associação de juventude rebelde com sexo e drogas era algo que a gente queria evitar. A gente está propondo uma nova representação, ou pelo menos uma representação liberta dos clichês de filmes de formação e de filmes políticos.
Algo muito presente nesta história é a desilusão dos jovens em relação à política. Você acha que os jovens experimentam a mesma desilusão hoje em dia?
O que a gente percebeu nas exibições internacionais é que, em todos os lugares, encontramos depoimentos de pessoas que foram às ruas em algum momento, participaram de grandes comoções nacionais, com a sensação de que as pessoas juntas conseguiriam melhorar a vida, mas os processos foram dominados por forças políticas estruturadas, e no final levaram a desilusões. O depoimento mais forte nesse sentido veio no festival de Roterdã. Um russo levantou a mão e disse que viveu em Moscou na década de 1970. Ele ouviu punk rock, e viveu toda a euforia da abertura política. Depois, ele viu os militares e os políticos dominarem a situação, e no final o Yeltsin chegou ao poder. Foi uma desilusão muito grande.
Se a gente vê a Primavera Árabe agora, o processo é semelhante. De alguma maneira, todos esses grandes movimentos populares estão fadados à desilusão. Eles são contemporâneos, mas permeiam a história da humanidade. Por outro lado, a gente pode abandonar a discussão política e falar que Depois da Chuva é um filme sobre a desilusão da juventude. É um momento em que se acredita muito, se sonha muito, mas no final é preciso botar os pés no chão e negociar com a vida real.
Depois da Chuva foi apresentado pela primeira vez no festival de Brasília, em uma data muito próxima das manifestações de junho de 2013. Acha que isso influenciou a apreciação do filme?
Imediatamente, as pessoas fizeram a conexão com a realidade. Desde 2013, com a primeira sessão, sempre que exibimos o filme nós discutimos sobre a situação política do Brasil hoje. Isso é bacana, porque se trata de um filme de época, que se passa em 1984, mas ecoa com o Brasil de hoje. Essa sempre foi a nossa ideia. Nós nunca quisemos que o filme ficasse enquadrado naquele exato momento, queremos trazer a situação para o Brasil de hoje.
Apesar de tantos prêmios, Depois da Chuva demorou mais de um ano para entrar em cartaz. Como foi o processo de lançamento?
A gente tem uma distribuidora desde o início, mas este é um filme brasileiro independente, autoral. Ele tem uma comunicação forte com o público, mas não tem um orçamento gigantesco para publicidade. Eu até acho que estaria em crise se tivesse todo esse orçamento. Alguns filmes custam R$2 milhões, e depois gastam R$3 milhões para conseguir determinado público. É a regra do jogo, não estou discordando, mas é uma maluquice que funcione desta maneira. As bilheterias são medidas pela quantidade de dinheiro que você tem para lançar um filme. A nossa estratégia arriscada foi tentar manter o filme vivo, apostando que ele seria selecionado em diversos festivais. Ele foi convidado em muitas exibições nos Estados Unidos, em cinematecas e universidades. De certa maneira, isso manteve o pequeno público ligado às notícias do filme. Não é um público gigantesco, mas é um público de qualidade, que ficou tocado pelas notícias, pela reflexão que Depois da Chuva vem trazendo. Esse é o público que vai às salas de cinema, para assistir, e que no boca a boca (tomara!) vai ajudar a manter o filme em cartaz por mais tempo.
Como você avalia a situação atual do cinema baiano?
A gente tem uma produção sazonal. De tempos em tempos, aparecem pessoas interessantes, e filmes interessantes. De vez em quando, ganhamos alguns prêmios. O que se discute muito aqui é a dificuldade de construir uma política de cinema constante. É difícil manter as pessoas trabalhando e também trazer novos jovens interessados, achando que é possível viver de cinema. Em Pernambuco, por exemplo, desde os anos 1990 surgiu uma nova geração, e o governo do Estado passou a investir anualmente no cinema por lá. Isso nunca ocorreu na Bahia.
Nos últimos quatro anos, nós tivemos três editais na Bahia, com valores muito abaixo daqueles existentes em Pernambuco, e apenas dois deles foram plenamente pagos. É como se a gente tivesse um edital a cada dois anos. Isso faz com que as pessoas se desestimulem e desistam. Essa atividade de cinema é muito instável. Mas existem pessoas inteligentes, e talentosas. Uma delas é o João Gabriel, que deve lançar Travessia esse ano, e tem o Daniel Lisboa, com Tropykaos, que vem uma trajetória consistente em longas-metragens. Ah, e tem o Revoada, do veterano José Umberto Dias. Existem curtas-metragistas muito bons, como Marcelo Mattos e Wallace Nogueira, que fizeram Menino do 5, vencedor de vários prêmios no festival de Gramado. Ou seja, há uma movimentação, e existem pessoas, mas falta uma política que favoreça o trabalho efetivo e constante dessas pessoas.