Um fato raro e preocupante ocorreu esta semana nos cinemas mundiais: a produção A Entrevista, da Sony Pictures, foi cancelada após ameaças terroristas. Hackers e grupos extremistas, que a polícia identificou como sendo norte-coreanos, tentaram impedir o lançamento desta paródia sobre um apresentador de televisão (James Franco) e seu produtor (Seth Rogen) que aproveitam uma entrevista de televisão para assassinar o líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un.
Desde as primeiras imagens divulgadas, os produtores começaram a sofrer pressões e ameaças de represálias, primeiramente diplomáticas, do próprio governo, e em seguida de grupos virtuais, que conseguiram acessar diversos documentos sigilosos da Sony Pictures e divulgá-los ao mundo inteiro. Poucas pessoas viram o filme, e de acordo com as primeiras críticas, o conteúdo político da comédia é bastante brando, criticando tanto o autoritarismo da Coreia do Norte quanto o imperialismo norte-americano. Mas pouco importa: representar o presidente de uma nação inimiga com seu nome verdadeiro e com um sósia no papel principal, com a intenção de simbolicamente matá-lo na tela foi considerado excessivo para certos grupos sociais. Além disso, esta história de assassinato serviria para enriquecer produtores americanos e japoneses, no caso da Sony.
Diante das repetidas promessas de atacar os cinemas que exibissem A Entrevista, a Sony Pictures cancelou o filme poucos dias antes de sua estreia, gerando um prejuízo multimilionário à empresa. Muitas outras produções já foram censuradas e banidas na história do cinema, mas talvez esta seja a primeira vez que isso ocorra a um blockbuster deste porte, e tão próximo da estreia. O argumento da Sony - e de muitas revistas, como a Variety - para justificar a suspensão do filme foi o medo dos ataques reais: caso algum ato violento fosse causado em nome deste filme, a Sony Pictures seria parcialmente responsável. Por isso, era melhor evitar o risco.
Ora, a responsabilidade dos produtores pode ser contestada, neste caso. Em 2012, quando um homem entrou em uma sessão de Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge atirando no público, muitas pessoas foram consideradas responsáveis - desde os gerentes do cinema até o diretor, por incentivar uma suposta cultura violenta -, mas a busca por culpados de certo modo minimizava a culpa do próprio atirador. Além disso, a busca paranoica por vários culpados escondia o fato que, apesar de ser uma tragédia lamentável, esta foi uma questão isolada, que felizmente não representava o comportamento da maioria dos frequentadores dos cinemas. Por mais agressivo que seja, um filme não pode ser a única justificativa de um massacre. O mesmo vale para videogames, canções rock ou outros itens culturais acusados pelo governo americano em tragédias como Columbine, por exemplo.
O que está em jogo é a cultura do medo, tão poderosa nos Estados Unidos desde os ataques de 11 de setembro. Após esta data, a nação mais rica e uma das mais belicosas do mundo descobriu que poderia ser superada militarmente. No caso de A Entrevista, o medo de algo minimamente próximo de um ataque terrorista era insuportável para os produtores. Além disso, constituiria uma trágica ironia, já que a comédia mostra, mais uma vez, os americanos como vencedores. Mas a Sony Pictures nunca seria responsável pelo suposto ataque terrorista anunciado por grupos extremistas. Isso equivaleria a culpar a vítima, algo cada vez mais comum nos tempos de pavor coletivo. A grande responsabilidade dos produtores, isso sim, diz respeito ao próprio filme.
Personalidades influentes e politizadas de Hollywood, como Jimmy Kimmel, Steve Carell, Judd Apatow e Michael Moore afirmaram que a suspensão do filme seria uma vitória da censura, abrindo um perigoso precedente para que outras produções polêmicas também sejam canceladas após ameaças. Este receio tem fundamentos: desde a controvérsia sobre A Entrevista, o projeto do filme Pyongyang, passado na Coreia do Norte e estrelado por Steve Carell, foi abandonado pelos produtores. Se esses casos se repetirem, outros grupos podem se sentir no direito de proibir obras que ofendam suas crenças e ideologias. É o poderoso argumento da liberdade de expressão, tema caro à “terra dos corajosos e livres”, como diz um dos lemas dos Estados Unidos.
A questão da liberdade de expressão é bastante complexa. Algumas pessoas defendem que ela deveria ser ilimitada e irrestrita - ou seja, todo mundo deveria ter o direito de dizer absolutamente tudo o que quiser. Este foi o caso do apresentador Bill Maher, que atacou a decisão da Sony. Esse também é o argumento evocado em algumas polêmicas brasileiras, como no caso de certos deputados militares, que reclamam o “direito” de promover a cultura do estupro em nome da liberdade de expressão, ou então outro líder religioso nacional, que clama pelo “direito” de proferir frases homofóbicas e misóginas em nome da mesma liberdade.
Ora, em nenhum país do mundo a liberdade de expressão é irrestrita. Apologias ao crime e incitação ao ódio, por exemplo, são crimes passíveis de punição. “A sua liberdade de expressão termina no momento em que ela restringe a liberdade alheia”, já dizia o ditado. Por isso, caso A Entrevista de fato faça apologia ao ódio, ao crime, e levante acusações falsas sobre países alheios, o filme e seus responsáveis (produtores, diretores) têm que responder legalmente pelo que fizeram. No entanto, como dissemos acima, parece que este não é o caso da produção.
A presença do humor torna os contornos mais difíceis de cernir: toda acusação de “apologia ao crime”, no caso de uma comédia como essa, pode ser minimizada pelo recuo do humor em relação à representação da realidade. “É apenas uma comédia”, dizem muitos espectadores diante das críticas negativas. Paródias e charges são mais facilmente absolvidas de acusações de plágio e crime, e cenas de outros líderes políticos sendo alegremente assassinados no cinema - como a releitura da morte de Hitler em Bastardos Inglórios - não causaram indignação em ninguém. (Bom, naquele caso, Hitler já estava morto há muito tempo, e é mais difícil encontrar pessoas que o defendam hoje em dia…). Mas para grupos extremistas, de qualquer ideologia ou crença, a simples representação cômica de um líder já pode ser considerada uma ofensa extrema - vide o caso das revoltas contra charges do profeta Maomé na imprensa europeia.
Isso não significa que A Entrevista não deveria ter sido feito. O filme tem o direito de existir, e o dever de responder pelo que defende. Do mesmo modo, ele também mereceria chegar aos cinemas, mesmo que para ser rejeitado e dispensado por críticos e pelo público. Mas neste caso, o cinema e a cultura foram amplamente deixados de lado, cedendo espaço ao gesto político representado pelo filme. Venceu a estratégia típica do pensamento republicano norte-americano, que defende a redução da liberdade (no caso, de ver o filme) em nome da segurança (no caso, para evitar os ataques terroristas).
Vamos torcer para, passada a confusão, o filme conseguir brechas de exibição, e chegar ao público por vias alternativas, como o VoD e algumas salas seletas de cinema. Vamos torcer, acima de tudo, para que este caso não se espalhe e afete outras produções. A Entrevista não parece ser nenhuma obra-prima, mas se o mesmo pensamento da censura fosse aplicado em outros momentos do cinema, o público nunca teria visto outras obras-primas provocadoras como Apocalypse Now, A Grande Ilusão, M.A.S.H., O Encouraçado Potemkin e Paisà. Todos esses filmes enfrentaram polêmicas e pressões, mas depois conseguiram chegar ao público, e com o tempo conquistaram o seu devido lugar na história do cinema.