No Festival de Brasília 2014, o diretor Gabriel Mascaro apresentou a primeira ficção de sua carreira, Ventos de Agosto. A história gira em torno de uma moradora da cidade grande (Dandara de Morais) que passa a viver em um vilarejo de catadores de coco, onde inicia um relacionamento com um habitante local (Geová dos Santos). Um dia, um pesquisador de sons (o próprio Mascaro) aparece para investigar os ventos na região. Inesperadamente, a aparição de um cadáver transforma a vida desses personagens.
O AdoroCinema conversou em exclusividade com o diretor sobre este projeto, que também foi selecionado na competição oficial do Festival de Locarno. Confira a seguir este bate-papo, e leia a nossa crítica.
De onde surgiu a história de Ventos de Agosto?
Tem uma construção recente nos anos 80 e 90 no Nordeste brasileiro de casas que eram vilas de pescadores, onde depois foram construídas grandes mansões. Em menos de 20 anos, todas as casas estão destruídas na orla. Isso mostra uma sede de especulação imobiliária muito louca, em relação à paisagem natural. Isso era um primeiro ponto de partida: pensar o imaginário da destruição, da ruína ainda recente. Existe muita discussão sobre a ruína como entidade filosófica. O que faz a gente ir a um lugar histórico para ver um resquício de humanidade? Neste filme, existe uma ruína muito presente na vida das pessoas que vivenciam a ruína enquanto isso faz parte de suas vidas. Depois eu conheci o cemitério, que está realmente sendo destruído pelo mar, e percebi a relação especial que os moradores da vila têm como os seus mortos e parentes. É muito orgânico, eles percebem os restos de ossos no mar, e levam para o cemitério de novo...
Você tenta filmar algo muito difícil no cinema: o vento...
Uma das coisas que norteiam esse projeto para mim é como filmar o impossível. Comecei a pensar nas manifestações do vento nos corpos, nas coisas, no espaço. Os atores atuando em contato com as coisas com o qual o vento interage. O projeto nasce da ideia de filmar o impossível, e o cinema é um pouco isso, uma busca orgânica para tornar o invisível, visível.
Por que decidiu filmar neste vilarejo em particular?
Eu viajei muito para aquela região, eu já tinha uma história pessoal naquele lugar. A gente fez uma experiência de residência de um mês lá para escrever, baseado no que a gente ia conhecendo das pessoas. Voltamos para produzir, e depois para filmar. Ao mesmo tempo, o montador ia montando tudo que a gente filmava, era um segundo gesto de reescrita. Foi uma experiência próxima daquela que o Miguel Gomes fez um Tabu: ele criou núcleos narrativos, é algo muito arejado poder incorporar elementos baseado na experiência do que se passa ao redor. O personagem do retratista foi assim. A gente estava filmando, de repente veio esse retratista e a gente pegou ele, trouxe ao filme.
No festival, o seu filme foi comparado a obras do leste europeu, do Japão, da Nouvelle Vague, do cinema brasileiro dos anos 1980... O que pensa dessas referências?
Na verdade, é um exercício natural da crítica tentar buscar um lastro direto para justificar a sua pesquisa. Esse não é o meu caminho. Não procuro referências diretas para legitimar o meu trabalho. Logicamente, várias pesquisas são feitas, mas elas não estão necessariamente atreladas a nomes de autores. Não é preciso citar nomes de autores, ou de filósofos... Na verdade, como o filme trabalha com uma camada de experiência sensorial de corpos e espaços, a maneira como aquilo toca as pessoas é mais forte do que citar ou recitar nomes, mostrando minha cinefilia para verificar se aquilo procede para legitimar o filme.
Desde o início, você já tinha decido se colocar em cena no papel do pesquisador de ventos?
Foi algo muito natural. Eu pensei esse personagem, me coloquei no lugar dele, porque também era a forma com que eu me sentia, psicologicamente, fazendo um documentário, filmando... É o estranhamento de quando você chega em um lugar novo, e a filmagem tem uma roupa estranha, tem códigos próprios. Foi um desafio de atuação interessante, lúdico, de interagir com as pessoas e construir um tencionamento.
Por que decidiu misturar uma atriz profissional (Dandara de Morais) a um grupo de não atores?
A Dandara fez Malhação, mas não tinha feito cinema antes. Para mim, foi bacana misturar, e isso não era nada novo. Nesse filme, era muito fundamental incorporar pessoas do local para que eu pudesse acessar este imaginário da morte, que era para mim algo muito importante. Foi natural não trazer um elenco de fora para interpretar algo que já estava ali, bastava viver e estar de corpo aberto para incorporar o que acontecesse. Da experiência de observação pode nascer a ideia de construir cinema. O cinema pode ser um exercício de vivência. Este é um projeto poroso, disposto a incorporar experiências que só o local pode trazer.
Em outro debate no festival, o diretor Taciano Valério, de Pingo d'Água, afirmou que a falta de dinheiro não representava uma limitação, mas um motor criativo. Ele sugere que se tivesse mais dinheiro, isso estragaria o filme. Concorda com ele?
Se tivesse um pouquinho mais de dinheiro, seria bom! (risos) A gente trabalhou com um orçamento muito baixo. Seria bom ter um pouco mais de tempo para filmar, colocar dois ou três montadores... Mas falando sério: o filme tem o seu tamanho próprio, o tamanho da equipe. A gente gostaria de remunerar melhor as pessoas, mas se fosse um tamanho maior, estragaria também. O acesso visual do filme também é parte de uma experiência orgânica de estar lá na hora. Se tivesse a mediação de outro fotógrafo, outra equipe, eu teria perdido o ritmo do momento.
O festival tem dois filmes de Pernambuco em competição, em seis selecionados, e tem se falado muito na nova fase deste cinema pernambucano. Você enxerga conexões temáticas ou estéticas entre os filmes feitos no Estado?
A gente teve um momento recente em Pernambuco. Vários filmes convergiram na urbanização do Recife. Esse tema transversalizou todas as pessoas que moram no lugar, e os diretores que moram no Recife hoje. Tem O Som ao Redor, Um Lugar ao Sol, que eu filmei em 2005... Mas hoje eu faço esse filme, que não tem nada a ver com essas questões. É difícil tentar cristalizar algo mais claro, porque isso é algo livre, tem equipes diferentes, que às vezes conversam entre si, às vezes não. A gente interage muito. Todos os filmes que eu faço são mostrados a todos os diretores de Pernambuco que você conhece. Todos eles assistem aos cortes destes filmes em processo. Isso pode influenciar ou não, mas isso só reforça o sistema de cada um como algo muito próprio, muito intransponível.
O Som ao Redor e Um Lugar ao Sol podem ter temáticas próximas, mas os processos são diferentes. Felizmente, existe uma política pública que está ajudando alguns projetos, com mais ou menos dinheiro, mas os diretores conseguem financiamento para fazer investigação de linguagem, sem necessariamente ter um compromisso de bilheteria. São filmes que estão postulando outro lugar no cinema. Que bom que a política pública em Pernambuco não está preocupada com a filiação ao mercado!
Você considera Ventos de Agosto um filme político?
O perigo do discurso do engajamento é cair no pragmatismo eleitoreiro. Ventos de Agosto transcende esta dimensão ao pensar a política do abandono, a política da permanência, da grafia corporal, do gesto cinematográfico... Isso para mim é política. Destruir uma narrativa, uma ideia de expectativa com o envolvimento com os personagens é algo político. O filme beira um extremo de naturalização do processo da vida, que é político.
Apesar de abordar a morte, o filme é repleto de humor, como outras obras suas.
Eu não tenho medo do que o ordinário oferece como bizarria, e também não tenho medo do que a bizarria oferece como possibilidade de se naturalizar a ponto de virar ordinário. É um filme sem medo, que vai para cima das coisas sem medo de cair em uma taxação, sem medo de brincar com o humor, com a seriedade, com a poesia, com a humanidade. São questões que eu poderia escolher, me filiar a uma só delas. Mas o filme não se filia a nenhuma, ele abre camadas e não vai fechando.
Você já está terminando um novo projeto de ficção, não é?
Estamos em fase de montagem. Ele está sendo montado por um uruguaio, o mesmo que fez Whisky. Quem fotografou é um mexicano que está agora na Tailândia, trabalhando com o Apichatpong. É uma coprodução entre o Brasil, a Holanda e o Uruguai. Tem o Juliano Cazarré, a Maeve Jinkings e o Vinícius de Oliveira, e a preparação de elenco é da Fátima Toledo. É a história de um vaqueiro que quer ser estilista de moda. Acho que precisamos de mais um ano de montagem antes de lançar.