Exibido na mostra competitiva nacional do Festival de Gramado, A Estrada 47 desponta como um dos favoritos aos Kikitos deste ano. Com um apuro técnico impressionante, graças à recriação do ambiente enfrentado pela Força Expedicionária Brasileira durante as batalhas ocorridas na Segunda Guerra Mundial, o longa-metragem também chama a atenção pela abordagem humana da tropa liderada pelo personagem de Júlio Andrade e o tom crítico à operação como um todo.
Entrevistamos o diretor do filme, Vicente Ferraz, que falou um pouco sobre a verdadeira saga que foi rodar em pleno inverno europeu e ainda os bastidores das filmagens. O resultado você confere logo abaixo.
ADOROCINEMA: Você vem de um filme muito elogiado, Soy Cuba - O Mamute Siberiano, que também deu muito trabalho a ser feito.
VICENTE FERRAZ: Foi um trabalho diferente, porque exigiu muita pesquisa. Em A Estrada 47 o trabalho foi físico, por causa da dificuldade de andar na locação devido à neve. Soy Cuba está muito ligado à minha vivência como estudante de cinema, ter ido morar em Cuba tão cedo, minha paixão pelo cinema latino-americano... Mas mesmo a pesquisa, buscar material de arquivo, foi duro também.
AC: Dá para perceber que você tem um interesse muito grande por história.
VICENTE: Descobri isso sem querer, sabia? Não tenho uma formação acadêmica, mas leio muito e acabo descobrindo com os filmes que fiz. Tenho outro documentário que fiz, Arquitetos do Poder, sobre as campanhas políticas, que tem uma curiosidade. Quando estava filmando em Brasília estourou o escândalo do conhecido mensalão. Então tinha entrevista marcada com Duda Mendonça, Genoíno... Consegui no documentário retratar aquele momento da história.
AC: Como surgiu propriamente a ideia de falar sobre a Força Expedicionária Brasileira em A Estrada 47?
VICENTE: A pergunta que faço é a seguinte: por que não fizeram antes? O que acho incrível é que há muitas histórias sobre a participação do Brasil na guerra, é possível fazer vários filmes sobre isto. Se você pensar que, há 70 anos, 25 mil jovens brasileiros cruzaram o oceano, encararam o pior inverno do século, estiveram na frente de batalha na Itália e depois voltaram... Esta história não pode se perder no tempo, isto me interessou muito.
Sou de uma geração que pegou o final da ditadura, então tinha rechaço a qualquer tema ligado ao exército brasileiro. Tinha uma visão muito ideológica disto e não via o lado humano. Depois, quando comecei a entender o que foi esta experiência para as pessoas, e comecei a ter contato com alguns ex-combatentes e através de diários, percebi que era uma maneira de falar sobre o Brasil em uma situação limite.
AC: Algo que chama a atenção é que não há em A Estrada 47 a intenção de glorificar a FEB. Ao mesmo tempo em que reconhece o que foi feito, é também muito crítico. É muito raro encontrar no cinema brasileiro algum filme que critique o exército. Como você vê esta questão?
VICENTE: O exército ou a polícia ou os bombeiros ou os médicos são seres humanos. O serviço de saúde no Brasil, tirando algumas exceções, é lamentável. Mas como é o dia a dia daquelas pessoas que trabalham ali, sob pressão e recebendo os miseráveis como a última salvação? Com o exército brasileiro é a mesma coisa. Estamos falando do ser humano. Há um período recente da história onde se torturou, se matou e isto precisa ser revisto.
Vou dar como exemplo o exército alemão. É histórico dizer que todo soldado era nazista. Não. Ali existia o exército e a S.S., uma guarda pretoriana ligada ao partido nazista, mas você pode pegar um soldado ou até um pequeno oficial do exército alemão que não era nazista.
AC: Ao assistir o filme pode-se imaginar a dificuldade que deve ter sido a produção, até mesmo pela logística de filmar em outro país em pleno inverno. Como foi esta definição sobre onde seriam as filmagens?
VICENTE: Uma coisa que era fundamental para o filme era neve, e ela não é fácil de encontrar. Você encontra no inverno a partir de uma certa altura, e ainda torce para isso. A questão principal é financeira, pois era um filme rodado em euro, que precisava de uma parceria na Itália... Você precisa ter uma film commission que te apoie. Queria muito fazer naquela região onde o Brasil esteve, até porque a população era muito simpática ao projeto. Mas a film commission de Bolonha naquele momento estava economicamente esvaziada. Então filmamos em Friul-Veneza Julia, que faz fronteira com a Eslovênia e a Áustria, porque eles deram um apoio financeiro substancial ao filme, junto com o Ministério da Cultura. Mas tudo isso não aconteceu em uma ou duas semanas, mas em anos. Cinema é isso, algo muito demorado e difícil.
AC: Há no filme uma coesão entre os cinco atores principais, pela camaradagem de quem está naquela situação e precisa ultrapassar aquilo. Como foi este trabalho com os atores para construir este clima?
VICENTE: Tivemos um preparador de elenco fantástico, que montou uma logística de exercícios e técnicas. Mas tem outra coisa que é o seguinte: quando você tem um filme deste, de viagem a outro país e ainda mais no inverno, as pessoas de alguma maneira se juntam e rola uma camaradagem fora do set também.
AC: Ao apresentar o filme no Palácio dos Festivais, você comentou que talvez não faça um novo filme tipo este, devido à dificuldade enfrentada.
VICENTE: Esta é uma empreitada difícil para qualquer cineasta. Mesmo para um cineasta mais experiente é um projeto muito difícil, ainda mais no meu caso, que tenho poucos filmes realizados. As filmagens foram em 2011, sempre com 11 ou 13 graus negativos.
AC: A Estrada 47 inicialmente estava programado para ser exibido no Festival de Brasília do ano passado e depois foi transferido para o Festival do Rio, o que causou uma certa polêmica. Por que a mudança?
VICENTE: Foi uma decisão do distribuidor. A Europa Filmes achava que seria mais interessante colocar num festival como o do Rio do que no de Brasília. Fiquei um pouco contrariado, mas são coisas que vão além do diretor.
AC: Em relação ao lançamento comercial, já há alguma previsão?
VICENTE: O lançamento estamos vendo agora com o distribuidor, para definir qual é a melhor data. O tentador é que ano que vem completa 70 anos do final da Segunda Guerra Mundial, seria uma boa oportunidade.
AC: E para o futuro, você já está com algum novo projeto?
VICENTE: Estou começando a desenvolver um projeto que envolve uma história entre escravos na Guerra do Paraguai. Os personagens são todos escravos ou ex-escravos, é também uma situação limite. A ideia é que seja ficção, mas sem data para as filmagens. Quem faz cinema precisa respirar fundo, senão estaria fazendo outra coisa que desse um retorno mais direto.