Depois de diversos curtas-metragens, o diretor maranhense Frederico Machado apresentou no Festival Guarnicê 2014 o seu primeiro longa-metragem, O Exercício do Caos, que já havia sido exibido no circuito comercial em 2013. O diretor conversou em exclusividade com o AdoroCinema sobre a difícil produção deste projeto, e sobre o fraco incentivo do governo do Maranhão ao cinema:
Qual é a origem deste projeto?
A ideia inicial veio da ópera do Prokofiev, um músico russo. Eu ouvi uma ópera chamada O Anjo de Fogo, cinco anos atrás na casa de um amigo, que foi montador deste filme e que montou todos os meus curtas. Ele me falou dessa ópera, sobre um anjo que vinha do inferno e se transformava em um anjo do bem. Aquela ópera ficou na minha cabeça. Eu estava lendo as poesias do meu pai [Nauro Machado], que é um grande poeta, bem hermético, com poesias densas sobre a morte e a vida. Eu já fiz um curta para as poesias dele, chamado Inferno, mas sempre quis fazer algo ficcional, e esta história da ópera se encaixava. Logicamente, a história mudou muito, com a densidade da poesia no Nauro revertida em uma linguagem cinematográfica, uma narrativa mais linear.
A concepção foi mudada com a pré-produção, a produção e a pós-produção. A gente não teve um roteiro decupado, e sim uma linha de argumento baseada nessa ópera, na poesia do Nauro e em uma história verídica que aconteceu no interior do Maranhão: um pai transava com as filhas, e para ele isso era algo bem natural. Estes casos são comuns, nós fizemos um trabalho de seis meses pesquisa e achamos muitos casos. É cruel, e eu quis mostrar isso no filme, sem julgamento.
Você passou todas essas pesquisas e referências aos atores? Como foi a preparação do elenco?
O Auro [Juriciê], o Di [Ramalho] e a Elza [Gonçalves] tinham feito meu curta anterior. Eles são atores amadores de teatro, mas nunca fizeram cinema. As três meninas nunca trabalharam com a linguagem do cinema, nem do teatro. Elas são bailarinas. A gente fez uma audição com várias pessoas e selecionamos esse núcleo. Fizemos um trabalho de preparação durante três meses, justamente de sensações destes personagens. Como eu não tinha um roteiro decupado, os diálogos foram trabalhados com os atores. O roteiro é quase coletivo.
Eles ouviram a ópera, e leram a poesia do Nauro, mas eu não dei o início, o meio e o fim. Foi proposital na pré-produção, na filmagem – foram só dez dias de filmagem – e principalmente na montagem com o Raimo Benedetti. A gente levou esse material filmado e fez quase um quebra-cabeça com todas as sequências do filme. Inclusive, existem duas versões diferentes do filme: tem uma versão para o mercado brasileiro, e uma para o mercado internacional.
Por que a decisão de propor duas versões?
A gente queria colocar um teor mais político na versão brasileira, com um aspecto social mais presente, do povo nordestino. Na versão internacional, não tem muito isso, pensamos trabalhar o silêncio, fazer um filme existencial forte. Mas a gente fez várias versões na montagem, e pretendemos colocá-las no DVD. O filme é um thriller psicológico, mas trabalha com camadas dramáticas, sociais e políticas. Queria que ele fosse bem aberto, que cada pessoa pudesse completar a obra, ir para a casa com o filme e pensar nos caminhos desses personagens. Esse é um poder que o cinema tem, e que não é tão trabalhado hoje em dia. Tudo tem começo, meio e fim, muito explicadinho, então a ideia inicial foi de fazer um filme aberto.
Você considera O Exercício do Caos um filme experimental?
Ele tem traços de filme experimental, mas acho que é mais uma ficção. A ideia inicial, que também mudou muito, era de fazer três partes do filme, e cada parte com um gênero específico: a primeira parte seria documental, mostrando os personagens cortando mandioca, comendo, como uma família real. A segunda parte seria ficcional, com recursos fictícios, a exemplo do capataz e da mãe fantasma. Seria uma ficção tradicional, e a terceira parte seria totalmente experimental. Entraria música, a poesia do Nauro, a montagem aleatória. Eu queria brincar com esses três gêneros. Na realidade, ficou uma ficção com alguns traços documentais e outros experimentais. Mas em todos os festivais em que o filme entrou, ele foi mostrado como ficção.
Quando apresentou o seu filme no festival Guarnicê, você citou a dificuldade de fazer cinema no Maranhão. Como foi o processo no caso de O Exercício do Caos?
Nunca teve edital específico para cinema no Maranhão, apenas um edital para cultura, que abrange cinema. Eu trabalho com cinema desde 1997 aqui em São Luís. Eu morei no Rio dos 11 aos 26 anos e voltei para São Luís porque o roteiro de um curta foi premiado no Minc e precisei voltar para fazer esse curta. Comecei a trabalhar e viver aqui, abri uma locadora, e a Lume Filmes como produtora, depois consegui fazer três grandes festivais internacionais. E um destes festivais permitiu que nascesse a Lume Filmes como distribuidora.
O Maranhão nunca reconheceu isso. A gente batalha muito, eu e toda a classe que luta para fazer cinema aqui. Quando eu apareci, em 1997, tinha outro grupo totalmente diferente do que tem hoje. Mas neste caminho, essas pessoas desistiram por causa das dificuldades. O que eu vejo é uma falta de respeito muito grande das empresas locais, e do governo que já mudou - nem é este governo atual... Fala-se muito sobre o governo majoritário aqui, mas já tiveram outros com chances de mudar, e nada fizeram. É uma situação impregnada na cidade, de falta de verbas, de respeito pelo cinema. Eu vejo um descaso.
A produção de O Exercício do Caos foi totalmente independente. A gente gastou 110 mil reais na produção do filme. Foi tudo feito nas economias da Lume como produtora e distribuidora. O retorno de crítica e de respeito foi muito grande, e de público também. Foi lançado no mercado em novembro e teve 8 mil pessoas. É um número baixo, mas para o filme que temos, tão experimental, é um público muito bom. Vendemos para o Canal Brasil, vamos lançar em DVD... Ele quase se pagou. Neste tempo, a gente fez um filme menor, O Signo das Tetas, de 80 mil reais, mas gastamos 40 mil reais e agora estamos sem verba para finalizar.
Isso acontece principalmente porque a gente fez três festivais de cinema nos últimos três anos, que deram um prejuízo enorme. Não tivemos retorno financeiro, nem de mídia. É uma luta quase louca, mas a gente faz isso porque ama, e porque é apaixonado. Infelizmente, o festival Lume do ano que vem não vai ser em São Luís, a gente já fechou com Belo Horizonte e Vitória, porque lá a gente conseguiu o apoio que tentou muito aqui, sem sucesso. Mas quero continuar filmando no Maranhão, contando histórias de São Luís.
O que eu vejo de produção local no momento é muito bom. Teve o longa-metragem Luíses, um filme denúncia bem produzido, tem outro longa-metragem que vai passar no Guarnicê, Escolha Seu Caminho... É um momento importantíssimo, é neste momento que a gente tem que lutar por um edital de cinema, porque está tendo produção. Mas se as coisas continuarem assim, o pessoal que está fazendo cinema vai desistir também. A gente consegue fazer porque tem uma distribuidora e uma produtora. Agora é sentar e ver com calma os próximos passos. Já temos quatro projetos de longa encaminhados. A gente também vai abrir uma revista talvez ainda esse ano, chamada Cinema de Arestas. É um movimento composto por oito cineastas que trabalham com cinema independente, para misturar gêneros e mostrar uma cultura popular mais presente, mas que possa dialogar com a cultura universal. A ideia é dar mais importância ao que está fora da tela, do que dentro da tela. Vamos convidar também críticos de cinema.