por Bruno Carmelo
Uma das estreias desta semana nos cinemas é o drama venezuelano Pelo Malo, grande vencedor do festival de San Sebastian. O belíssimo filme traz a história de um pequeno garoto que sonha em alisar os cabelos para tirar uma foto na escola. Mas ele sofre com a imagem que a mãe e os vizinhos possuem dele. A história consegue abordar habilmente temas complexos como a homossexualidade, o racismo e a política nos países sul-americanos. Confira a nossa crítica.
Para o lançamento desta produção no Brasil, a diretora Mariana Rondón visitou o Rio de Janeiro, e conversou em exclusividade com o AdoroCinema sobre esta produção. O tom descontraído e amigável da cineasta funciona como uma boa metáfora de todo o filme, que também é marcado pela maneira carinhosa de abordar temas bastante difíceis. Confira:
Pelo Malo
Como surgiu o projeto de Pelo Malo?
Desde o início, eu queria trabalhar duas coisas em especial: o respeito às diferenças, e como a falta deste respeito pode gerar violência. Eu quis buscar essa violência nos olhares, nos gestos. Não era a violência das armas, e sim toda aquela que existe antes de se pegar numa arma. É a violência das coisas íntimas, mas que podem se tornam grandes e causar feridas nos seres humanos. É a violência ao mais profundo da alma.
Você aborda a descoberta da sexualidade em um garoto muito pequeno. O tema é bastante raro no cinema.
Para mim, esse filme foi como exercício de equilíbrio, para estabelecer justiça. Há pouco tempo, na França, me disseram algo de que eu gostei muito: que este não era um filme sobre a homossexualidade, e sim sobre a homofobia. Quando você olha para o personagem, você percebe a ausência masculina em sua vida, e nota que apenas um personagem é capaz de lhe dar um presente, de lhe dar atenção, de fazer a roupa que ele precisa quando vai tirar uma foto... É isso o retrato da homossexualidade? Ou é o retrato de uma ausência? Eu não decido. Como diretora, nem eu nem o filme decidimos. Deixei um espaço para que o espectador decida, baseado em sua própria experiência.
Por exemplo, quando estive em uma sala onde a maioria do público era negra, disseram que este era um filme sobre o racismo, e a sexualidade era uma desculpa da mãe para não aceitar o seu filho negro. Claro, tudo isso foi feito de maneira intencional, para permitir a discussão sobre a falta de respeito a partir de várias perspectivas. Mesmo a mãe cumpre o papel masculino e feminino, de pai e mãe, o que faz dela muito masculina. Ela abandona a sua feminilidade, nega-a, e pede ao filho que a imite, com as mesmas restrições na liberdade que ela tem.
Ao mesmo tempo, este não é um filme maniqueísta. A mãe não é uma vilã, ela realmente gosta do filho, mas não sabe como se comportar em relação a ele.
Esta é a grande tragédia. Se ela não gostasse dele, simplesmente não teria solução. Mas ela não sabe como amá-lo, porque ela repete com ele os danos que provoca a si mesma. Para mim, ela está sempre no limite, porque não tem trabalho, perdeu o marido... Ela está muito solitária. Ela pode usar um uniforme e ter poder sobre os outros, mas continua muito solitária.
Como você encontrou o seu elenco? As atuações são excelentes, tanto de Samantha Castillo quanto do garoto Samuel Lange Zambrano.
Eles são ótimos, não é verdade? Nenhum deles fez cinema antes. Ela é atriz de teatro, e ele fez apenas comerciais e videoclipes. A avó também não fez cinema, ela foi cantora na juventude. O que fiz foi trabalhar muito juntos, e criar um universo igual para todos. Nós trabalhamos três meses, mas nunca ensaiamos o roteiro. Ensaiávamos situações que poderiam acontecer, para que os diálogos parecessem verdadeiros, inspirados nas próprias experiências deles. Por isso brincávamos, eram sempre jogos, e eu mudava o poder entre eles. Como na vida, o poder evidencia o melhor e o pior nas pessoas. E o pior, eu guardava para os personagens! O que é melhor é que os atores não se parecem em nada com seus personagens! É belíssimo. Foi um trabalho grandioso.
Quais foram as reações do público quando você mostrou o filme em San Sebastian e outros festivais de cinema? Tiveram diferenças entre os países?
Muitas. Na França, dois conflitos surgiram como fundamentais: a sexualidade e o gênero. Os homens diziam “Mas uma mãe não se comporta assim!”, e as mulheres revidavam “É claro que podem se comportar assim!”. Eles afirmavam que a mulher não amava o filho, e elas insistiam que a mãe o amava, sim! Na América do Sul, todos entendem muito mais esta mãe do que na Europa. Na América Latina, muitos espectadores ressaltaram o aspecto político, porque reconheceram a questão da polarização política. Estamos em extremos políticos tão grandes que as ideias distintas não dialogam. No filme, eu discuto três coisas que dificilmente convivem em harmonia: a política, a sexualidade e o racismo. São três coisas que despertam reações fortes.
O que você acha que Pelo Malo representa no cinema venezuelano? As produções do seu país raramente se exportam para os países vizinhos.
Estamos produzindo muitos filmes nesse momento, mas exportamos pouco. É um cinema de consumo interno. Existe algo muito bonito acontecendo: o público venezuelano está vendo os filmes, e nenhum deles tem menos de 80 mil espectadores. Todos ultrapassam essa marca, e conseguimos fazer cerca de 40 filmes por ano. Mas é verdade que Pelo Malo conseguiu algo extraordinário, por estrear em cerca de 22 ou 23 países. Esta é a diferença, porque o filme conseguiu ser mostrado fora do país. Isso é algo inédito. Fomos para a Espanha, Suíça, Hungria, e tivemos 50 cópias na França. É uma loucura!
O que causou um desenvolvimento tão grande na produção venezuelana?
Depois de os cineastas brigarem por milhares de anos, foi aprovada a Lei do Cinema. Ela permite que o Centro Nacional Autônomo de Cinematografia seja de fato autônomo, e que seja usado o dinheiro dos impostos. E tem muito dinheiro disponível, porque existem impostos de todo o setor audiovisual: televisão, publicidade, produtores de cinema, exibidores de cinema... Essas empresas ganham muito dinheiro. Isso nos permite ter um comitê plural que escolhe os filmes, e os jurados vêm do governo, do cinema, até de fora do país. Mesmo que haja brigas, este é o espaço mais plural que possa existir. Além disso, a lei obriga os exibidores a manterem os filmes venezuelanos por pelo menos duas semanas em cartaz. Durante oito anos, foi algo difícil, mas hoje, os filmes nacionais são os mais vistos no país. Todos ganham dinheiro: produtores, distribuidores e exibidores. O cinema nacional tornou-se um bom negócio. Agora esperamos que o público fique cada vez mais exigente conosco, e que nós façamos filmes cada vez melhores.
Você considera Pelo Malo um filme político?
Sim. Eu quis fazer um filme sobre a Venezuela, sobre este lugar polarizado, onde as diferenças políticas e sociais são tão fortes que invadem a intimidade da família, dos amigos, dos amantes. Este é o produto da falta de respeito ao outro. E a Venezuela é um lugar muito político, mas o conflito não se limita ao país, ele é universal. Cada vez mais, eu apresento o filme e mais pessoas querem vê-lo, e gostam da história. Na saída da sessão, as pessoas me dizem que a dor do mundo nesta história é muito forte.