por Bruno Carmelo
No Vº Paulínia Film Festival 2013 foi apresentado o drama Entre Vales, segundo longa-metragem dirigido por Philippe Barcinski após Não por Acaso (2007). A história mostra Vicente (Ângelo Antônio), que leva uma vida estável ao lado da esposa e do filho, até atravessar um trauma e acabar vivendo nas ruas. O diretor conta como se interessou pelo cenário do lixão, como escolheu o seu ator principal e quais foram as dificuldades do projeto.
Entre Vales tem estreia prevista para abril de 2014.
Como surgiu o projeto de Entre Vales? Vocês começaram a captar recursos em 2008, certo?
A captação foi muito lenta, porque o projeto tem uma temática difícil para levantar dinheiro. O primeiro dinheiro que entrou foi da prefeitura. Como filmamos em 2011, levou três anos para captar, e depois mais um pouco para finalizar... Artisticamente, o que aconteceu é que eu estava buscando, como sempre busco, construir uma metáfora de alguma coisa. Tento fazer uma imagem que seja mais do que a própria imagem. Quando eu fiz Não por Acaso, a sinuca e trânsito eram muito mais do que sinuca e trânsito, eram uma metáfora visual de algo que os personagens estavam vivendo, sentindo.
Há muito tempo atrás, eu fiz uma pesquisa sobre um documentário que não foi feito, sobre lixo. Isso foi antes de Lixo Extraordinário. Eu tinha visto Estamira e ficado muito impressionado com a potência daquele ambiente. Achei que ali tinha algo que daria para traduzir em sensações na tela. Depois eu fui para São Paulo, e busquei cooperativas de catadores de lixo. Achei muito intenso o que se sentia naqueles lugares. Eu me deparei com várias situações de pessoas com perdas no lixão. Quase a totalidade das histórias era de pessoas que foram lá não porque queriam, e sim porque perderam a família, por exemplo. O lixão é um ímã de histórias de perdas. Depois, quando fui à cooperativa, ouvi história de reconstrução. Muita gente chega lá sem nada, sem autoestima, sem higiene, sem família, sem dinheiro, e depois de um tempo trabalha, toma o seu ônibus, e tira seus 1.200 reais por mês. Esse trabalhador é como uma babá, uma doméstica, um cobrador de ônibus, um vigia. Ele é plenamente inserido na sociedade. Aí caiu a ficha: a questão do lixo era muito forte, porque por um lado atrai as perdas, e por outro, nas cooperativas, atrai histórias de reconstrução.
Assim eu tive a ideia de contar a história de um cara que teve perdas, e que depois se reconstrói. Em termos de metáforas, o lixo é perfeito para isso, porque trata de perda e reconstrução, de descarte e reaproveitamento. De repente, tudo se encaixou. Pensei em contar essa história de maneira descendente, com um cara que perde tudo, e em paralelo uma história ascendente, que vai reconstruindo, e aos poucos a gente vai entendendo o porquê. Tem um ponto de inflexão claro, que é o ponto de virada da história. Esteticamente, eu quis fazer um filme com um tempo mais largo do que Não Por Acaso, que pudesse respirar, que não fosse tão preciso e calculado. É um tempo do circuito de arte, um tempo que você respira junto do personagem, anda junto com ele. Não é algo objetivo, com uma duração precisa para transmitir a mensagem.
Você sempre imaginou uma câmera colada ao personagem, seguindo o protagonista no lixão?
Na verdade, todos os curtas que fiz, e os longas que eu fiz, trazem um personagem masculino em primeiro plano, que vive uma jornada de transtorno, e a câmera está muito próxima dele. Desde que eu me entendo por cinéfilo, sempre me atraí por um cinema muito grudado ao personagem, onde a câmera serve mais para passar a sensação do que o personagem está sentindo do que simplesmente transmitir algo narrativo objetivo. Em filmes como Repulsa ao Sexo e Chinatown do Polanski, O Iluminado do Stanley Kubrick ou Spider - Desafie Sua Mente do Cronenberg, a câmera está colada no cangote do personagem. Mais recentemente, também tem o cinema social dos Dardenne, e eu fico muito impressionado com essa proximidade, é algo que me atrai.
São sempre narrativas bastante urbanas, tanto nos curtas quanto nos longas-metragens.
É, esta é a minha experiência, minha vivência. É a ideia de encontrar uma poética diferenciada. Cada curta ou longa tenta trazer algo particular, com o repertório de imagens que todo mundo tem sobre a cidade.
Como você escolheu o Ângelo Antônio para o papel principal?
Eu pensava um pouco em outras pessoas logo no início, mas quando saquei que era ele, a gente se encontrou. O Ângelo tem algo ótimo, porque ele vai muito bem tanto na ternura quanto na potência. Ele é um cara com muito carisma. Em 2 Filhos de Francisco, você vê tanto o pai mais afetivo do mundo quanto o mais bruto do mundo, ao mesmo tempo, na mesma cena. Isso foi algo que me chamou a atenção nele. Em Entre Vales, ele é ao mesmo tempo um bicho e um pai de peito aberto.
Como foi o trabalho? Você tinha referências específicas?
Não, o Ângelo é o ator muito intuitivo, ele é o mais intuitivo que eu já conheci. Ele está sempre num estado de concentração muito grande, em um universo particular dele. A gente ensaiou muito. Teve um trabalho de preparação física grande, porque ele corre atrás do caminhão, salta do caminhão, atira saco, vai à rua etc. Esse é um balé que a gente tem que coreografar, testar. Ele teve um trabalho de aproximação com a comunidade. Aquilo parece documental, mas todo mundo ali autorizou participar, todo mundo aprendeu que não podia olhar para a câmera. Teve uma logística complexa. O Ângelo estava integrado, a gente fez ensaios lá, e dava para ver ele abraçando as pessoas. Ele tem um lado humanista muito forte. Ele chegou a um ambiente desses e quis se aproximar das pessoas.
Entre Vales foi apresentado aos catadores de lixo?
Não teve nenhuma grande sessão. Gramacho fechou o aterro, e as pessoas estão pulverizadas. É difícil encontrar todo mundo. A gente está pensando em mostrar também numa instituição. Mas na pré-estreia a gente já mostrou o filme a muitos catadores mais próximos. Eles ficaram bastante emocionados.