por Bruno Carmelo
Um dos filmes selecionados no Festival Varilux de Cinema Francês em 2013, o drama O Homem que Ri é uma adaptação do famoso livro homônimo de Victor Hugo. A trama se concentra em Gwynplaine, um garoto mutilado (Marc-André Grondin), cujas cicatrizes dão a impressão de um sorriso constante. Ele é acolhido pelo generoso Ursus (Gérard Depardieu), enquanto se apaixona pela irmã de criação, a garota cega Déa (Christa Theret). O livro mistura a fantasia e a crônica social, criticando a ganância dos ricos.
Em entrevista exclusiva ao AdoroCinema, o diretor Jean-Pierre Améris (de Românticos Anônimos) conversou sobre sua adaptação, citando as escolhas do elenco, das imagens e mesmo das passagens do livro. Entre as várias citações e referências, Améris comenta que se inspirou em Chaplin e Fellini, e lembra que o personagem do Coringa, em Batman, fazia referência à Gwynplaine. O Homem Que Ri está em cartaz nos cinemas do Rio de Janeiro.
Confira abaixo essa conversa:
O livro de Victor Hugo já foi adaptado várias vezes ao cinema. Como você se apropriou desse texto?
Eu quis encontrar a mesma emoção que tive quando li este livro, aos quinze anos de idade. Era o sonho da minha vida. Eu ainda não conhecia o filme mudo de Paul Leni, em 1928, e nunca vi o filme italiano de Sergio Corbucci, mas eu me lembro de uma telenovela francesa que me impressionou quando eu era criança.
Minha intenção era não fazer um filme histórico. O filme se passa no século XVII, na Inglaterra, mas eu não queria fazer um filme de época. Eu quis fazer um conto. É algo que eu adorava quando era jovem. Eu costumava ser muito complexado com o meu tamanho, eu não era muito feliz, e eu encontrei uma escapatória no cinema. O que me encantava no cinema eram os filmes fantásticos, de estúdio, como A Bela e a Fera, Frankenstein, porque nós temos a ideia de entrar em um mundo. Modestamente, com O Homem Que Ri, eu queria encontrar este sentimento.
Naturalmente, você precisou tomar algumas liberdades em relação ao livro. O texto original desenvolve vários personagens, mas você preferiu se concentrar em Gwynplaine.
Foi um grande trabalho que eu fiz com um roteirista, Guillaume Laurent, que também escreve para os filmes de Jean-Pierre Jeunet. Ele também gostava de O Homem Que Ri desde a juventude, e ele pretendia desde o início seguir apenas Gwynplaine. Este é o personagem com quem eu me identificava. Victor Hugo abandona esse personagem frequentemente, ele abre parênteses, fala da aristocracia e do período histórico, mas eu queria fazer como nos contos, partindo de uma criança abandonada, acolhida, que encontra seu lugar nos palcos, mas acaba mudando de meio social. Ele é como uma marionete conduzida pelo destino. É um filme sobre a identidade, sobre um garoto que não compreende as coisas, que não tem confiança nele mesmo. Ele é cego – Victor Hugo dizia que o cego da história era Gwynplaine, e não Déa.
Você optou por imagens com um tom fantástico, mágico, bem longe do realismo. A luz da lua é sempre muito forte sobre os personagens...
Sim, eu sempre gostei dos filmes anglo-saxões, em Londres, quando tem a névoa na rua... Adoro os códigos do gênero. E esse estilo também está no livro, é uma forma de respeito a Victor Hugo. Aliás, este é um romance que não teve muito sucesso na França. Ele não é tão conhecido quanto Os Miseráveis. Ele foi acusado de misturar o trágico (o livro tem algo de Romeu e Julieta) e o grotesco, com a caricatura dos homens políticos. Mas esta obra influenciou muito a arte anglo-saxã. A primeira adaptação é um filme americano, não francês. Depois o criador de Batman criou o personagem do Coringa inspirado em O Homem Que Ri, e Tim Burton faz o mesmo. Bonello também adora O Homem Que Ri, e ele levou isso a L'Apollonide - Os Amores da Casa de Tolerância...
Rumo ao fim do filme, você decidiu reforçar a conotação política e social do livro.
Com certeza. Eu sempre fiz filme sobre marginais, minha sensibilidade me leva a fazer filmes sobre pessoas que não se inserem na sociedade. Eu fiz histórias sobre a prisão, sobre os sem-teto... Neste novo filme, o personagem perdeu tudo, e o que lhe resta é sua voz, sua revolta. O livro também traz isso, eu quis respeitar o diálogo de Victor Hugo. As pessoas reclamaram, disseram que eu modernizei o livro, que Hugo jamais teria dito “O desemprego está por todas as partes”, mas o texto é assim mesmo. Esse texto fala da nossa sociedade das aparências, onde é preciso ser belo como Brad Pitt e Angelina Jolie. A vontade de ser famoso afeta o personagem. É normal, isso é humano.
Para Victor Hugo, isso é algo autobiográfico, porque fala sobre o artista que é ridicularizado quando seu envolve com a política. Hugo sofreu a mesma coisa diante do parlamento, quando foi vaiado. A história também é autobiográfica porque fala de perder seus filhos. Hugo perdeu vários filhos, e queria falar sobre a dificuldade de proteger as crianças.
Antes desse filme, você trabalhou em pequenas produções independentes, como Românticos Anônimos. Você considera O Homem Que Ri a sua maior produção até agora?
Sim. Como eu fiz muitos filmes realistas, à medida que eu envelheço, eu tenho mais vontade de criar pequenos mundos. Eu queria fazer O Homem Que Ri com cenários mágicos, por isso eu precisaria fazer em estúdio. Estava fora de questão filmar em castelos reais, nós criamos tudo. Eu nunca tinha feito filmes em estúdio, mas nós fomos para Praga porque existem grandes estúdios, e é menos caro.
O Homem que Ri
Como foi o trabalho com a equipe de direção de arte? Os figurinos têm uma grande importância na história, o castelo sombrio é bastante impressionante...
É preciso ler Victor Hugo nos detalhes. Ele fala que o castelo era como um túmulo. Então nós decidimos usar o mármore, as grandes portas pretas. Quando Gwynplaine está na carroça, as cores são quentes, laranjas, acolhedoras como um ninho. Mas este castelo é imenso, e tudo é frio. Com o diretor de arte, nós tínhamos muita liberdade, já que a intenção era de não se limitar a uma época. Existem coisas do século XIX, algumas do XVII... Gwynplaine usa uma roupa estilo rock. Nós constituímos um dossiê visual, assistimos ao Casanova de Fellini, que era nossa referência para os espaços. Eu sempre admirei Fellini por causa do uso dos espaços. Existem poucos móveis, só uma cadeira em um canto, um quadro do outro lado. Nós tentamos seguir isso.
Como você escolheu seus atores? O filme mistura os veteranos como Gérard Depardieu e novas promessas do cinema francês, como Marc-André Grondin e Christa Théret.
Eu sempre gostei de misturar, como entre profissionais e não profissionais, adultos e crianças. Era interessante ter um ator experiente e dois novatos. Eles descobriram muitas coisas que nunca tinham feito. Eles tiveram que aprender a mímica, uma certa maneira de atuar. Como ser justo, simples, mas ao mesmo tempo expressivo.
Quando eu comecei a escrever, eu já pensava em Gérard Depardieu, eu sempre quis que fosse ele. Depardieu não é parecido fisicamente com o personagem original, porque ele é descrito no livro como alguém muito magro, é um filósofo que nunca come, mas eu imaginava Depardieu dizendo as falas. Muitos diálogos vêm do livro. Quando ele diz “Você mordeu o fruto de ouro, agora vai cuspir as cinzas”, ou “É do inferno dos pobres que se faz o paraíso dos ricos”, essas frases são de Victor Hugo. Ou ainda outra frase, muito importante para mim: “As pessoas não são necessariamente malvadas, elas são perigosas quando têm medo”. Eu conseguia imaginar Depardieu dizendo esses bons conselhos.
Depois eu descobri que ele sempre gostou do livro, e que pretendia interpretar Gwynplaine depois de Cyrano de Bergerac. O filme nunca aconteceu, mas ele ficou feliz que essa história retornasse na sua vida. Ele também adicionou algo muito autobiográfico. Quando ele grita “Meu filho morreu!”, dá para lembrar que o filho dele realmente morreu há quatro anos. É a dor dele que ele gritava, ele é o pai que não consegue proteger seu filho. Ele foi, como na história, muito acolhedor, muito amigável com os dois jovens atores.
Já os dois jovens tinham outros desafios pela frente. Eles tinham que compor o personagem, e depois uma versão exagerada quando estavam no palco. Christa Théret interpreta uma garota cega...
Sim, eu dei referências para eles trabalharem. No caso dela, nós assistimos a uma das mais belas cegas da história do cinema, em Luzes da Cidade, de Chaplin. Eu imaginava Christa Théret fazendo algo assim, porque ela tem uma postura moderna, mas um rosto bastante clássico, que evoca as atrizes do cinema mudo. Ela tem sempre a cabeça meio erguida, como Lillian Gish. Foi interessante mostrar esses filmes para ela, para ela conseguir encontrar essa expressividade. Isso nunca é fácil para os jovens atores, principalmente para o Marc-André, que tinha muito medo de exagerar. Ele tinha medo de parecer ridículo. Eu dizia: “Não tem problema nenhum em ser ridículo; o que é bom sempre beira o ridículo”. Além do mais, o estilo do filme era esse mesmo. E ele é muito expressivo, ele consegue representar esses personagens de grande ingenuidade, como Edward Mãos de Tesoura. Eu não fiz muitos testes, eu já escolhi pessoas por quem eu tinha um afeto, pessoas que eu gostaria de filmar.