por Francisco Russo, direto de Cannes
Walter Salles está em alta. Após oito anos de trabalho, o diretor brasileiro enfim lançou o aguardado Na Estrada, adaptação do livro "Pé na Estrada", de Jack Kerouac. Na disputa pela Palma de Ouro, prêmio máximo do Festival de Cannes, o diretor encontrou hoje pela manhã com jornalistas brasileiros para um bate-papo. O AdoroCinema esteve lá e traz a você os principais momentos.
O diretor Walter Salles no tapete vermelho do Festival de Cannes
O início
Há décadas Hollywood tenta adaptar para o cinema o livro "Pé na Estrada". Francis Ford Coppola adquiriu os direitos da adaptação em 1979 e desde então vinha tentando fazer com que o projeto saísse do papel. Ao aceitar o convite, Walter Salles resolveu fazer um documentário percorrendo os lugares visitados por Kerouac ao escrever o livro. Tratava-se de um laboratório para conhecer o ambiente que seria retratado.
"Existem mais de 15 roteiros escritos desde 1950", disse o diretor. "A grande maioria deles terminava com a morte e a punição do personagem Dean Moriarty, que nunca foi assimilável para a cultura protestante norte-americana. Acho que uma das razões pelas quais o filme demorou tanto tempo para ser feito, e uma das quais acabou sendo feito de forma independente, é o desconforto que este personagem politicamente incorreto gera. Quando o Coppola assume o projeto, em 1979, ele volta às origens do livro e procura fazer adaptações que lhe parecem muito mais fiéis ao relato original do Kerouac."
Salles falou ainda sobre uma surpresa encontrada durante o desenvolvimento do roteiro. "Quando estávamos preparando o documentário nos deparamos com uma cópia do manuscrito que o irmão da última mulher do Kerouac tinha guardado. Foi lá que descobrimos que o início do manuscrito é completamente diferente do livro, que já havíamos começado a adaptar dois anos antes."
Questionado se alguma das versões anteriores do roteiro havia influenciado o filme, o diretor disse que não e explicou o porquê. "Não podíamos usar nenhuma destas versões prévias porque elas haviam sido financiadas por companhias diferentes que detinham os direitos. Tanto que o Jose Rivera fez questão de não ler nenhuma das versões, para não ser influenciado. O ponto de partida dele foi o livro, o manuscrito e todas as entrevistas que tínhamos feito durante o processo da realização do documentário."
Sam Riley interpreta Sal Paradise, alter ego de Jack Kerouac
A importância do documentário
Um dos motivos para Na Estrada ter demorado tanto foi a realização do documentário que percorreu o trajeto seguido por Kerouac. Walter Salles disse que tê-lo realizado foi essencial para o projeto. "Ter feito o documentário influenciou bastante, especialmente nos diálogos. O contato com os personagens reais acabou ampliando muito a postura original do livro, mas em perfeita harmonia com o que ele representa."
Sobre o que se trata Na Estrada?
"É um filme sobre a falibilidade humana, mas também sobre a importância de não julgar o outro", explica o diretor. "Isto vem muito também do livro, o que é bastante extraordinário no Kerouac, sabendo que ele vinha de um ambiente bastante conservador. Tento propor a mesma coisa, não fazer um julgamento sobre o personagem Dean Moriarty mas deixar ele se expressar livremente para que cada um de vocês possa julgá-lo de forma diferente. Isto era uma das coisas mais difíceis desta adaptação."
Kristen Stewart
A estrela de Crepúsculo entrou para o elenco de Na Estrada bem antes do primeiro filme da série ser realizado. Walter Salles explicou como foi sua escolha. "O Gustavo Santaolalla e o Inárritu tinham acabado de ver o primeiro corte do filme do Sean Penn, Na Natureza Selvagem, e adoraram a Kristen no filme. Eles me disseram que a menina de 16 anos que procurava estava ali. Eu me lembro que tive que escrever o nome dela, pois era a primeira vez que o ouvia. Após ver o filme na Mostra de São Paulo achei que era o caminho a seguir. Um encontro foi marcado para conversarmos e ela veio muito diretamente dizendo que era seu livro de cabeceira e que faria qualquer coisa para interpretar a Marylou. Ela tinha 16 ou 17 anos naquela época, então foi muito interessante ver uma atriz que tinha exatamente a idade da personagem ter este grau de identificação."
Kristen Stewart é a sensual Marylou, apaixonada por Dean Moriarty
Viggo Mortensen
Na coletiva de imprensa, Walter Salles ressaltou a importância de Viggo Mortensen na realização do longa-metragem. O diretor explicou melhor como foi a participação do astro de Senhores do Crime e O Senhor dos Anéis.
"Viggo é um ser renascentista. Ele é ator, poeta, fotógrafo, fala seis línguas, tem uma dinâmica entre culturas, então tem uma visão muito polifônica da realidade. Além disto, tem uma paixão pela cultura beat, que conhece profundamente. Quando ele chegou em Nova Orleans, uma semana antes da filmagem, estava extraordinariamente preparado. Trouxe todas as roupas do personagem, as armas que ele poderia estar usando naquele momento, a máquina de escrever e ainda fez uma pesquisa aprofundada sobre o que o Burroughs estava lendo naqueles anos. Ele fez tantas improvisações que se tornou co-autor do filme. Estes atores que acreditam neste tipo de preparação acabam influenciando mesmo. É o parceiro ideal, seria genial fazer um filme apenas com atores assim."
Pequenos papéis para atores conhecidos
Além do trio protagonista, Na Estrada conta com diversas participações de atores famosos em pequenos papéis. "Acho que o livro é o grande ponto de conexão entre todos estes atores e também as partes são muito boas", explica o diretor. "São papéis interessantes para você entrar, marcar e poder sair", complementa.
Kirsten Dunst é um dos nomes conhecidos que têm papéis menores em "Na Estrada"
Cenas mais ousadas
Na Estrada conta com diversas cenas de nudez parcial e até mesmo um ménage a trois entre os personagens de Garrett Hedlund, Sam Riley e Kristen Stewart. Questionado se a presença de tais cenas gerou algum temor pelo lado comercial, já que o filme poderia ser mal recebido nos Estados Unidos, o diretor disse que não teve este pensamento ao fazê-lo.
"Nós filmamos como achamos que deveria ser filmado. Quando estou fazendo um filme nunca penso no que deveria ser aceito ou não, faço o que sinto à flor da pele naquele momento. Inclusive aconteceu algo curioso recentemente. O filme foi mostrado para algumas distribuidoras americanas e uma delas disse que estava interessada nele, mas queria que fosse retirada a cena com o Steve Buscemi. Dissemos então que isto não seria possível. Esta é a vantagem de você estar em uma produção europeia, onde o diretor tem o direito legal do corte final do filme."
O filme impulsionando o livro
O lançamento de Na Estrada pode fazer com que o livro de Jack Kerouac volte a ser procurado pelos jovens. O diretor se empolga com a ideia. "Seria o maior presente para toda a equipe que fez o filme. Nosso ponto em comum era a paixão que tínhamos pelo livro, então para um realizador saber que um jovem de 16 anos ao ver o filme vai ter vontade de descobrir o livro é um presente", declarou.
Walter Salles ainda contou uma experiência que teve ao vir para o festival. "Vindo para Cannes, no avião, umas duas cadeiras mais longe havia um rapaz lendo o livro. Quando isto acontece há algo muito importante que é o espectador também criar seus personagens. Podemos dar uma das interpretações possíveis sobre a leitura deste livro, mais apenas o Kerouac pode dizer."
Cena de "Na Estrada"
Filmes de estrada
A carreira de Walter Salles tem se notabilizado pelos filmes de estrada, como Central do Brasil e Diários de Motocicleta. O diretor falou sobre o porquê de gostar tanto do formato. "Tenho impressão que os filmes de estrada possuem uma qualidade muito específica. Eles partem da ideia que, à medida que você se afasta do ponto de partida, entende melhor de onde vem, quem você é e eventualmente quem pode vir a ser. Neste sentido você está sempre confrontado a personagens em crise emocional e que se redefinem ao longo de uma narrativa. Como instrumento cinematográfico é muito atraente e a filmagem em si também é, porque nenhum dia é igual ao outro. Você precisa trabalhar em sincronia com os elementos, então é preciso estar ligado com o que acontece à beira da estrada. A matéria-prima vai mudando dia a dia, o que é fascinante e também exaustivo."
O futuro
Há alguns anos Walter Salles fez a promessa de jamais emendar duas produções internacionais em sequência. "A força de um cineasta está em suas raízes", explica. Desta forma, sua próxima produção será rodada no Brasil. Sem entrar em detalhes, o diretor revelou que está trabalhando em três projetos. Dois deles seriam com Fernanda Montenegro, o que viria a ser a reedição da dupla de Central do Brasil. Há ainda outro projeto, que tem sido desenvolvido há um ano pela equipe de roteiristas que costuma trabalhar com o diretor argentino Pablo Trapero, que contaria com as presenças de Ricardo Darin e Gael García Bernal.
Na Estrada
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