De volta ao Festival do Rio com sua mais nova fantasia apocalíptica, Marco Dutra dá vida ao cenário moribundo e agonizante do universo literário de Ana Paula Maia. Enterre Seus Mortos encerrou as exibições da mostra Premiére Brasil do Festival do Rio 2024, concorrendo pelo Troféu Redentor de Melhor Longa de Ficção – prêmio que, sete anos atrás, Dutra levou para casa junto com sua parceira criativa Juliana Rojas por As Boas Maneiras, uma reimaginação social e assombrosamente brasileira da fábula do lobisomem.
Para um diretor que, ao longo de sua trajetória, olhou bastante para o passado sociocultural brasileiro com a intenção de pensar o seu presente, dessa vez Marco constrói um amanhã que descende dos dramas climáticos, ambientais e sociais da atualidade. Enterre Seus Mortos adapta a dinâmica rural e sombria da fictícia Abalurdes, cidade em que cotidianamente chove granito e partes desmembradas de animais, crianças são contaminadas com A Síndrome e seguidores de uma seita religiosa fazem procissões diárias pela cidade à noite.
“Foi o filme mais difícil de fazer até agora”, relembra o cineasta em entrevista exclusiva para o AdoroCinema, que marcou presença na estreia nacional de Enterre Seus Mortos na última sexta (11). De uma oferta entusiasmada do produtor Rodrigo Teixeira para tocar essa adaptação, o que Dutra e boa parte da humanidade não esperavam era que uma pandemia mortal adiaria todo e qualquer plano para o futuro: “Isso entrou no filme de certa forma. Ele foi ganhando outros contornos enquanto eu escrevia sobre o fim dos tempos e a morte e vivia um colapso desse corpo que é o cosmos e o mundo”.
Uma pessoa, entretanto, parecia prever esse acontecimento histórico. “Escrevi Enterre Seus Mortos antes da pandemia. Parece que já pressentia que algo estava vindo”, confessou Ana Paula Maia. “Acho que não só eu, de alguma forma estava no ar”.
Ambição, desejo e jogo do bicho: Os Enforcados desvenda o que acontece nos condomínios de luxo do Rio (Entrevista)Um thriller, uma ficção científica ou um filme de horror?
É difícil definir Enterre Seus Mortos. Sua trama mescla diferentes gêneros para tematizar a vida, a morte, a violência e o fanatismo religioso. Curioso é perceber, porém, que as inspirações de Marco Dutra seguiram outro caminho, fora e dentro do cinema:
“Os livros da Ana Paula me lembraram e me levaram aos filmes do Cecil B. DeMille. É um pouco engraçado isso, um diretor da velha Hollywood, que lidou muito com histórias bíblicas em vários momentos da carreira. Ver e revê-las me trouxeram um imaginário muito interessante”, relembrou. “De resto, dei uma mergulhada louca na obra do pintor Hieronymus Bosch. Fiquei maluco olhando alguns livros e pegando um pouco da sensação de apocalipse sensual, meio gótico e bem humorado; misterioso e codificado, como se tivesse algo a ser desvendado”.
É compreensível, então, quando a escritora carioca chancela que “esse é o Enterre Seus Mortos segundo Marco Dutra”. A releitura do diretor paulista traz Selton Mello na pele de um protagonista diferente, ainda soturno, porém mais sentimental, fã do filme Titanic e apaixonado por Nete (Marjorie Estiano), sobrinha da devota Helena (Betty Faria) e telefonista do serviço de recolhimento de animais mortos onde o personagem trabalha. “Ele [Marco Dutra] tinha essa liberdade. Levou a história para o seu mundo e suas influências. É um outro Edgar Wilson”, explica Ana Paula.
Marco Dutra deixa sua assinatura na adaptação de Enterre Seus Mortos
Para os fãs do universo literário da autora, porém, não há motivo para lamúrias. O filme traz a atmosfera decadente, o horror distópico e os elementos marcantes desse faroeste ensanguentado e poluído. Além disso, ao lado de Edgar Wilson, ainda temos Tomás, seu colega de trabalho que, sendo padre no passado, foi excomungado pela Igreja Católica e, no longa, é brilhantemente encarnado por Danilo Grangheia.
A relação dos dois oferece uma dinâmica complementar. Enquanto Edgar se preocupa fria e pragmaticamente com suas tarefas, Tomás professa extrema-unções para as vítimas dos acidentes na estrada. “Sem nunca entrar numa discussão moral sobre as coisas. Ele tenta recuperar os valores humanos nesse futuro em que isso se perdeu”, esclarece Danilo.
O que surge desses dilemas é uma trama complexa, pouco preocupada com explicações fáceis. “A fantasia abre e destrava portas dentro da gente. Ela me faz ficar mais feliz e me ajuda a entender o mundo”, diz Marco. “E digo fantasia como algo que abarca a ficção científica, o horror e as coisas que são sombrias na textura, mas, no fundo, estão muito conectadas com o desejo de vida”. Diante dessa história, então, que hoje é uma trilogia de livros, seria um sacrilégio não pensar em uma continuação: “Quem sabe, quem sabe! Já houve conversas sobre isso. Vamos ver!”, revela.
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