É possível dizer que o cinema brasileiro já conta com uma vasta filmografia sobre escassez. Sobre realidades em que se falta de tudo, e muitas das vezes o poder paralelo exerce controle. Mas, em um país desigual, se há falta, também há concentração. Logo, o cineasta Fernando Coimbra, que já havia estreado seu primeiro longa-metragem com o pé direito no Festival do Rio de 2013 - ocasião na qual O Lobo Atrás da Porta foi um dos grandes vencedores -, chegou à edição de 2024 com a expectativa de repetir o sucesso com seu novo thriller, Os Enforcados.
Em Os Enforcados, Regina (Leandra Leal) e Valerio (Irandhir Santos) estão felizes no relacionamento e levam uma vida confortável na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Mas desde a morte do pai de Valerio, um dos maiores bicheiros da cidade, eles procuram se adaptar aos negócios criminosos da família. Ao mesmo tempo, o casal também têm despesas e dívidas para quitar, logo, o tio de Valerio, Linduarte (Stepan Nercessian) insiste que o sobrinho assuma a "banca".
Certa noite, o casal encontra uma solução para todos os problemas, em um movimento impulsivo: matar o tio e “vender” o negócio. No entanto, ao fazer isso, ambos mergulham ainda mais na violência e nas contradições do poder, das quais queriam escapar.
Parte sátira, parte Shakespeare, Os Enforcados surgiu quando O Lobo Atrás da Porta ainda estava em processo de finalização. No entanto, após Fernando Coimbra passar uma temporada no exterior dirigindo projetos como Narcos e What/If, somente em 2024 o filme conheceria as telas brasileiras pela primeira vez, no Festival do Rio - após a Première mundial no Festival de Toronto. E mais de dez anos depois do primeiro longa-metragem do diretor.
Festival do Rio 2024: Primeiro longa internacional de Marco Pigossi, Maré Alta reflete sobre pertencimento e sexualidade com história de imigrante brasileiroEm entrevista ao AdoroCinema, Coimbra revelou a inspiração em Macbeth, ao buscar contar uma história de cobiça, ambição, ou quando matar o Rei para pegar o lugar dele, nem sempre é sinônimo de sucesso. Para tanto, o diretor resgatou sua protagonista Leandra Leal, e realizou um desejo antigo de trabalhar com Irandhir Santos, dando aos atores uma abertura para que eles também pudessem reimaginar essa figura quase “folclórica” do Rio de Janeiro, o bicheiro:
“Esse personagem que ascendeu no Brasil, do ‘cidadão de bem’, que paga seus impostos. O que é correto, que é moralmente correto, mas, na verdade, é uma galera muito corrupta [...] Então para mim é muito sobre essa elite econômica que a gente tem, que é super corrupta, mas se vende como os exemplos da moral e dos bons costumes”, diz o diretor.
Estranho amor
Mas, Os Enforcados é também a história de um casamento. Para o diretor, o vínculo entre Valério e Regina consegue reunir, tanto a força, quanto uma vulnerabilidade destrutiva: “Justamente por eles fazerem um pacto juntos, que seria o pacto de um casamento, um projeto de vida, mas em cima de um crime, aquilo vai desandando, vai perdendo o controle [...] A força deles tá nessa conexão, e depois [a vulnerabilidade está] nessa desconexão que vai na mesma intensidade” diz Coimbra.
Essa intensidade é reconhecida por Irandhir Santos. A ator enxerga no casal principal uma forma de amor muito particular, e um desejo estimulado pela ambição, que em determinado momento, se transforma em disputa. Ao AdoroCinema, Irandhir confirmou que o processo de filmagem de Os Enforcados foi extremamente propositivo, e tanto ele, quanto Leandra, tiveram todo o espaço necessário para adicionar tempero a esse estranho amor:
“Também havia essa abertura, o que cada um poderia cooperar, até as ideias mais escabrosas. E era um jogo bonito, porque acabava virando jogo de conquista também, que tem muito a ver com esses dois. O que a gente trazia de proposta para a cena não deixava de ser a conquista entre Valério e Regina. Houve um jogo ali que a gente jogou sem anunciar, ele foi se estabelecendo. Isso foi bonito de viver assim com ela [Leandra]. Gostei de jogar esse jogo” diz Irandhir Santos.
A forma de amor que eles encontraram foi o estímulo mútuo desse desejo. Capaz de fazerem qualquer coisa para atingir. É a ambição, é um poder que vai sendo buscado por esses dois, até o ponto de ser disputado também
Leandra, por sua vez, ressalta o caráter político da obra. Ao AdoroCinema, a intérprete de Regina, compartilhou uma visão menos romântica da personagem, que no seu entendimento, possui a capacidade de amar "muito atravessada pela segurança financeira": "Precisa ter um acordo que tenha uma compensação financeira, para poder se apaixonar” observa. Para a atriz, Os Enforcados fala, acima de tudo, sobre violência:
“Você tá falando realmente de quem financia essa violência. Ele [o filme] é realista, mas não é realista. Tem toda a linguagem dele própria, mas ele tem isso no DNA, ele fala a partir de quem financia, de quem lucra com isso” analisa Leandra.
Sem mocinhos ou vilões - ou melhor, todos são antagonistas de si mesmos -, Os Enforcados também marca o amadurecimento da parceria entre Fernando Coimbra e Leandra Leal, especialmente considerando que o projeto de Coimbra foi o primeiro papel que a atriz aceitou, após sua experiência como diretora, com a série A Vida Pela Frente:
“Foi uma relação muito mais forte com uma confiança ainda maior, com uma entrega muito maior dos dois, uma troca. Já tinha sido incrível no Lobo [Atrás da Porta], mas teve esse amadurecimento dos dois” ressalta Fernando Coimbra.
Filme visto no 26º Festival do Rio em outubro de 2024. Os Enforcados estreia nos cinemas brasileiros somente em 2025.
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