O trabalho de Karim Aïnouz é repleto de singularidades. Um cineasta apaixonado por seus personagens e, literalmente, pelo caminho que percorrem durante suas jornadas, o diretor se entrega a certas experimentações em Motel Destino, fruto de uma produção entre Cinema Inflamável e Gullane.
A trama tem foco no estabelecimento de beira de estrada localizado no litoral cearense que dá nome ao filme. O pontapé é dado quando Heraldo (Iago Xavier), um jovem em fuga, é acolhido no Motel Destino. Sua chegada transforma completamente o cotidiano das pessoas que vivem ali e do casal interpretado por Fábio Assunção e Nataly Rocha.
Em entrevista ao AdoroCinema, o cineasta revelou como o filme atravessou seu destino. "Acho que começou numa época em que fiquei muito curioso sobre o que estava acontecendo com a geração que tinha passado pelo Bolsa Família, que tinha vivido uma espécie de um momento quase utópico na história brasileira", revela.
"Existe uma demonização da juventude preta no Brasil"
"Nunca falei isso, mas fiquei muito curioso sobre como as igrejas evangélicas seduziram uma parte tão grande da população brasileira e eu comecei a passar pela palavra desamparo assim", relembrou o diretor que estava interessado em entender esse processo. "Então, a gente fez uma pesquisa grande sobre personagens jovens que tinham derrapado um pouco da vida a legalidade. A gente fez uma pesquisa muito grande em centros socioeducativos no Ceará para entender o que tinha acontecido."
Karim estava investigando, principalmente, a parcela da juventude que tinha "derrapado para um lugar do crime ou para um lugar religioso demasiado fanático". Fizeram uma série de entrevistas e foi assim que o realizador decidiu criar a narrativa de Motel Destino. "Tem uma coisa de demonização da juventude, principalmente da juventude preta no Brasil e aí eu fiquei encantado com algumas das entrevistas e quis fazer um filme sobre um daqueles personagens, então o Heraldo começa ali como uma espécie de mistura de quem a gente entrevistou."
"Um retrato da juventude": Estrelas de Motel Destino refletem como personagens representam diferentes BrasisPara quem já assistiu a outros trabalhos de Karim, o amor é um tema recorrente em sua filmografia. Em Motel Destino não é diferente, conforme ele mesmo indica: "Sempre adoro fazer histórias de amor e me perguntei como poderíamos construir uma história de amor em torno desse personagem completamente desamparado, sem futuro", explica. "Me lembro que era época um pouquinho antes do golpe e que a gente brigava até entre amigos. Era uma discussão um pouco maluca, então falei 'gente, acho que preciso fazer um filme sobre solidariedade."
Ao construir os dois novos personagens, Elias (Assunção) e Daiana (Rocha), o cineasta também quis representar o momento político conturbado do país. Para ele, a ideia era colocar estes indivíduos "que nunca se encontrariam" juntos, incluindo um antagonista que representava pessoas que "nunca deveriam ter saído da toca", em referência aos aspectos declarados do dono do Motel Destino.
"É uma vontade também de fazer um cinema que mantivesse você grudado ali na ponta da cadeira querendo saber o que vai acontecer, um cinema que não fosse uma história previsível", acrescenta. "É uma história muito comum a história do Motel Destino, mas ela vai se desenrolando de um jeito que é pouco comum. Sempre adorei esses lugares meio duvidosos de passagem: um posto de gasolina, uma encruzilhada, um motel, um hotel de beira de estrada. Então, o filme veio muito a partir da escolha desse lugar como área central."
As subjetividades de Karim em Motel Destino
Durante diversos momentos da trama, de acordo com o andamento da história, as subjetividades do Motel Destino vão ganhando vida a partir das tensões dos personagens. Ao AdoroCinema, o diretor responsável por longas como O Céu de Suely, O Abismo Prateado, A Vida Invisível e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo revelou que esse recurso visto especialmente em filmes de terror não estava no plano inicial, mas surgiu de forma orgânica com a produção do longa.
"Essas manifestações subjetivas não existiam. Na verdade, era um filme muito calcado no agora, na experiência dos personagens ali dentro daquele espaço", explicou ele. "Isso foi acontecendo no decorrer do tempo e cada vez mais me dei conta de que motel era um terreno fértil não só para a história, mas para subjetividade dos personagens. Eu nunca tinha brincado com um cinema sobrenatural, um cinema de fantasia, um cinema fabular. Foi muito intuitivo! Acho que o filme estava tão bem construído no sentido narrativo que me permitiu que durante as filmagens trazer elementos que não estavam planejados na receita do bolo."
É um lugar tão maluco onde tudo é possível. Desde um grande amor ao abandono, um assassinato, a fuga, uma festa. É um lugar muito rico!
O diretor ainda contou como o bode (o público deve vê-lo em diversos momentos do longa) entrou nas filmagens brincando que "eu sou capricórnio e aquele bode olhou pra mim" foram o suficiente para checar se essa inserção funcionaria na história, algo que foi benéfico já que "ele tem uma coisa meio ancestral".
Durante a rotina de gravações, logo Karim percebeu que o motel poderia oferecer muito mais para o filme. "É um lugar tão maluco onde tudo é possível. Desde um grande amor ao abandono, um assassinato, a fuga, uma festa. É um lugar muito rico!", disse antes de brincar: "Ninguém tá fazendo propaganda de motel, né? A história ali era muito importante e comecei a entender que o motel poderia traduzir essa subjetividade do Heraldo".
Distante de um cinema que imprime simbolismos nas cores, Karim explicou também que foi pelo caminho oposto. Ao invés de se aprisionar a significados ocultos, quis apelar pelo sensorial. "Tentei um pouco sair do simbolismo, utilizar as cores e tentar entender sensorialmente o que elas provocavam. As cores foram usadas muito como uma maneira de adensar a atenção dramática do filme durante a história. Sempre trabalhando no corredor com cores complementares e dentro do quarto com cores primárias e entendendo como que essa intercessão muito intuitivamente aonde que ela jogava a cena".
Um cinema de texturas e calor
Algo apontado na crítica do AdoroCinema é como a estética de Motel Destino é deslumbrante. Existe uma profundidade dada ao filme por sua confecção em película, algo que transmite não apenas as texturas e temperaturas do que está em tela, como é importante para demonstrar o brilho e o suor dos personagens que são guiados por um thriller erótico.
Questionado sobre a importância do uso do recurso, Karim ainda brincou sobre a semelhança de Moonlight com Madame Satã. Enquanto o primeiro, vencedor do Oscar, faz um trabalho importante na apresentação da pele negra em tela no ano de 2016, a obra-prima do cineasta já inovava nesse aspecto em 2002. "A gente sai na frente e o cara pega tudo emprestado", disse rindo.
"Erotismo, fúria e violência": Fábio Assunção explica como personagem de Motel Destino vai muito além de um simples vilão (Entrevista)O realizador explicou algumas razões para utilizar a película no longa. "Acho que a película tenciona a cena porque você não pode gastar, custa dinheiro. É bonito quando você tem um filme de tensão em que no DNA dele tem a tensão e o suspense. Você tem um jeito de filmar muito preciso. Então, a [gravação da] cena tem que ser do tamanho da cena, ela não pode se dilatar", pondera.
"Outra coisa é que o digital na verdade é feito para o norte, para países de dimensões frias", acrescenta. "Quando você tem uma luz equatorial, ali onde as outras luzes são enormes, elas são brancas. O digital não te dá informação. Você distensiona o espaço estético e distensiona o espaço dramático, consequente."
Karim explica que a película interpreta o real, não o copia, algo que vai de encontro com sua visão como cineasta para um filme como Motel Destino. "Para mim isso é muito bonito como a película tem uma vida própria, que é uma vida química", detalha o realizador antes de abordar como, mesmo em 2024, ainda é difícil ter uma boa representação estética de peles escuras nos cinemas.
"O digital não tem textura de pele. Para mim era muito importante que a gente tivesse textura de pele, que a gente conseguisse filmar um pouco a temperatura das coisas", acrescenta. "No digital tudo fica frio. Foi uma loucura isso em Madame Satã, a gente teve que fazer um negócio no negativo. A gente tirou o fixador do negativo para poder ter uma textura de pele negra porque a Kodak nunca fez filme para isso, entendeu? Então ele se aproxima mais do que é."
Reunindo os processos estéticos e narrativos, o realizador conclui: "Esse filme foi um pouco dessa teimosia que eu fiz para a gente conseguir [finalizar], mas foi um tesão!"
Motel Destino está em cartaz nos cinemas.
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