Todo ano, o Dia Internacional da Mulher surge como um lembrete da nossa luta por direitos iguais, fim da violência e do machismo. Mas existe uma curiosidade nessa data em 2024. Ela surge apenas dois dias antes do Oscar, a maior premiação do cinema. Bem, como um site chamado AdoroCinema, não poderíamos perder a chance de unir as duas coisas, né? Afinal, a 96ª edição do prêmio da Academia traz algumas questões interessantes sobre o suposto papel da mulher na sociedade. E também, sua posição como voz ativa na arte. Aliás, quem vai ganhar o Oscar 2024? Vote aqui no seus favoritos e acompanhe a super live do AdoroCinema no domingo, 10 de março, a partir das 18h30.
As protagonistas do Oscar 2024
Vamos começar pelas personagens. Maior filme de 2023, Barbie derruba a artificialidade ao redor da boneca para mostrar uma Barbielândia onde as mulheres são capazes de tudo (temos até uma Barbie negra presidente!). O que por si só já é uma mensagem fantástica, mas não acredito que todo mundo entendeu. Afinal, a história é sobre a Barbie de Margot Robbie aprendendo sobre a complexidade de ser humana, além de perceber que não é definida pelas coisas que possui ou pela (quase literal) caixa que a colocaram. Sem falar que o longa ainda tem espaço para desenvolver Gloria (America Ferrera) numa jornada própria de autodescoberta que culmina no melhor monólogo do ano e um relacionamento melhor com sua filha, Sasha (Ariana Greenblatt). Mesmo assim, tem gente que acredita que o Ken de Ryan Gosling foi o protagonista da história? Todo mundo viu o mesmo filme? Ken tem seu próprio arco e um momento musical hilário, mas sua jornada não é mais importante para o filme em si do que a personagem-título. Isso aqui não é Mad Max onde Furiosa (Charlize Theron) foi mais interessante que o protagonista Tom Hardy.
Se essa falta de sensibilidade é presente num filme chamado Barbie, também é possível esperar que aconteça em outros indicados ao Oscar. Por exemplo, existem críticas ao redor de Assassinos da Lua das Flores por contar a história de uma tragédia da comunidade Osage através da visão do homem branco. Apesar de ter alguma verdade ali (e uma sensibilidade de Martin Scorsese para saber o seu lugar de fala), qualquer pessoa que assistir ao filme vai perceber como a performance de Lily Gladstone carrega o longa. Ela é uma vítima da circunstância, mas não passiva. Sua voz tem papel essencial na história, não foi a toa que Gladstone insistiu em competir na categoria de melhor atriz principal: por respeito à essa mulher tão extraordinária.
O mesmo vale para a Felícia de Carey Mulligan em Maestro - o que normalmente seria apenas o papel da “esposa de alguém importante”, na verdade compartilha quase o mesmo tempo de tela que Bradley Cooper. Ela foi a estrela e a força daquele relacionamento, não o contrário. Infelizmente, isso não acontece em Oppenheimer, que deve ser o grande vencedor da noite. Nada contra Christopher Nolan, mas é fato que suas personagens femininas servem apenas ao homem protagonista vivido por Cillian Murphy. Kitty (brilhantemente interpretada por Emily Blunt) tem como única característica ser alcoólatra e andar com uma garrafa de bebida pra cima e pra baixo. Ela tem apenas uma cena onde mostra toda sua garra, mas é isso. E nem vamos começar a falar sobre a Jean de Florence Pugh, que foi completamente desperdiçada, mesmo tendo sido essencial para o lado político da história.
A questão ao redor de Jean me remete muito à Bella Baxter (Emma Stone) em Pobres Criaturas. Ambas as personagens recebem críticas pelo suposto excesso de cenas de sexo em suas jornadas. Por mais que isso seja algo que podemos discutir em outro momento, é inegável que existe uma diferença entre elas. Em Oppenheimer, Jean não tem sua própria história, apenas aparece como um volátil interesse amoroso do protagonista. Basicamente, não temos tempo num filme de 3 horas para desenvolvê-la. Irônico, eu sei. Por outro lado, Bella realmente tenta ser definida pelos homens ao seu redor, mas ela os desafia o tempo todo. Sua trajetória, por mais polêmica que seja, é justamente a liberação contra os papéis que esses homens tentam obrigá-la a assumir. É uma fábula com defeitos, porém vemos a personagem ganhando sua independência e se desenvolvendo numa brilhante mulher dona do próprio destino. Mesmo que seja num filme que você não deveria ver ao lado dos seus pais.
Eu poderia ficar horas debatendo as personagens femininas no Oscar - basta falar na sutileza de Greta Lee em Vidas Passadas ao contar muito mais que uma história de amor, ou até mesmo falar sobre a esnobada em A Cor Púrpura, com tantas belas performances de mulheres negras. Porém, vou fechar essa parte da matéria citando uma atriz que mostra os dois lados da moeda: Sandra Huller. Indicada por Anatomia de uma Queda, ela também aparece em outro favorito da cerimônia, Zona de Interesse. No segundo, ela surge como uma nazista odiável, mas que não deixa de ser interessante. Inclusive, sua personagem Hedwig tem uma fala fundamental: “Meu papel é cuidar dos seus filhos”. Ou seja, ela interpreta uma mulher que se colocou no lugar imposto por aquela sociedade doentia, sem se importar com as consequências trágicas daquela forma de viver. É um questionamento importante que traz uma conversa profunda sobre responsabilidade e conveniência, retratando como a empatia humana pode ser desprezada por qualquer um.
Já Anatomia de uma Queda traz uma mulher moderna que sofre o preconceito do patriarcado, por conta de sua ambição e autonomia, num julgamento que pode lhe custar a liberdade que tanto almeja - ao mesmo tempo que a transformou num ícone das redes sociais, mesmo sem a gente saber se ela realmente cometeu o crime ou não. Nem sempre as personagens femininas precisam ser bondosas e perfeitas, já que existem mulheres de todas as personalidades, mas elas precisam ser desenvolvidas para não cair em estereótipos. É só isso que a gente pede. Já estamos cansadas de ver mulheres como simples adereços dos homens. Precisamos de mais vozes femininas no cinema. Não apenas na frente, mas também atrás das câmeras.
As mulheres que fizeram o Oscar 2024
Chegamos a mais uma edição do Oscar, retornando ao eterno debate acerca da sub-representação feminina entre as indicações. Neste ano, temos somente uma diretora concorrendo na categoria de Melhor Direção, Justine Triet, por Anatomia de Uma Queda. Em 2023, nenhuma mulher estava indicada nesta categoria.
Em uma temporada recheada de boas produções comandadas por mulheres - como Barbie, da gigantesca Greta Gerwig ou Vidas Passadas, de Celine Song - tais títulos, mesmo indicados a Melhor Filme, viram suas realizadoras ficarem de fora da disputa nas categorias principais. Não há espaço para mais de uma mulher, em uma mesma categoria?
Por que ainda precisamos falar da ausência de mulheres no Oscar? (Opinião)Nesta encruzilhada, ficção e realidade se encontram. Tanto na incompreensão - do nosso lugar, enquanto mulheres na arte, e no caso, no audiovisual - quanto na representação dessas "figuras" no mundo. E em uma grande e triste ironia, as personagens das obras presentes neste Oscar, ajudam a contar um pouco do que acontece na cerimônia da vida real, que as celebram.
Um contexto onde, o monólogo de America Ferreira em Barbie ganha ainda mais potência, e o desespero de Bella Baxter diante das limitações impostas pelo gênero, a assombra. Ou quando é possível entender como Anatomia de uma Queda, desenha a crueldade da estrutura familiar, capaz de esmagar a individualidade de uma mulher, criminalizando suas possíveis subversões (ela é bissexual? Ela traiu o marido?).
Chegando até Zona de Interesse, com uma mesma Sandra Huller, esposa e mãe, desta vez correspondendo perfeitamente a seu papel na família e naquela sociedade. Com um pequeno detalhe, daquela sociedade ser nazista. Em uma provocação inevitável, seria ela, vista como uma mulher mais valorosa para o mundo, enquanto a personagem de Sandra no filme de Justine Triet, é julgada?
O Oscar 2024, entre algumas poucas boas notícias - como Lily Gladstone, possivelmente a primeira atriz de origem indígena a levar a estatueta de Melhor Atriz para casa - novamente deixa um gosto amargo. Mesmo quando temos boas personagens femininas nas telas, diversas, controversas, difíceis e belíssimas, as mulheres ainda não são inteiramente autorizadas a contarem suas histórias, quanto poderiam se fossem realizadores homens. Que são autorizados a tudo. Desde Maestros, a criadores de bombas atômicas. Até personagens femininas interessantíssimas. Até as péssimas.
É preciso continuar pressionando e questionando, por um Oscar que enxergue as realizadoras e cineastas, com a mesma atenção que se debruça às personagens escritas, produzidas e dirigidas pelos homens.