Alguns filmes encantam pela história em si; pelos fatos vividos pelos personagens. Outros nos fascinam pela forma como os fatos são contados. "O piano" poderia ser mais uma história de amor e adultério como tantas outras. Porém, o excelente roteiro de Jane Campion vai além , nos enredando em um mundo de erotismo e mistério; submissão e revolta ; insensatez e lucidez. Como tantas outras mulheres , Ada , vivida por Holly Hunter , atravessa o oceano para fazer um casamento arranjado. Ada é muda desde os 6 anos de idade; perdeu a fala sem motivo aparente: um aspecto muito interessante do filme. Como tantas outras mulheres , ela aparentemente se submete a um mundo marcado pelo patriarcado. Só que Ada não é como todas as mulheres. Apesar de aparentemente frágil e indefesa , possui uma obstinação feroz , que beira a teimosia; é altiva , misteriosa e luta com todas as forças para recuperar a sua voz , que é o seu piano. Ada fala por meio do piano, que é abandonado na praia por seu marido, devido à dificuldade de transportá-lo. Ele lhe nega sua voz e ela lhe nega qualquer tipo de afeto físico ou emocional. Além das belas imagens ; da trilha sonora vigorosa e coerente com o filme ; além das grandes interpretações , “O piano” tem outro mérito que deve ser destacado: a aura de mistério; o que não podemos compreender totalmente , mesmo depois de assisti-lo muitas vezes. Existe algo de impenetrável em “O piano” por meio da personagem de Ada . Para o cineasta espanhol Luis Buñuel, o que falta há maioria dos filmes é o mistério, ingrediente essencial a qualquer obra de arte. Em “O piano” não falta mistério, sondagem psicológica ; personagens paradoxais e um profundo intimismo sensual transmitido não apenas pelo enredo em si ; também pelos movimentos de câmera , que valorizam os rostos, os gestos e parecem acompanhar os estados de espírito dos personagens, proporcionando ao filme uma grande fluidez das imagens , muito plásticas , subjetivas , quase um raio-X do mundo interior dos personagens , principalmente o da protagonista. Em uma cena , a câmera aproxima-se gradativamente até mergulhar no coque de Ada, como se o olhar do espectador pudesse penetrar em sua subjetividade , em seu feminino. É o ápice do voyeurismo. Não podemos nos esquecer de que as formas circulares dizem respeito às mulheres. As cores escuras dos trajes somadas ao excesso de lama do local onde a trama decorre proporciona um clima hostil ao filme , que nos remete a um mundo externo que pouco concede e a outro interior : misterioso e insondável. Merece destaque a cena em que Ada joga-se no mar com o seu piano, por ser talvez o momento mais misterioso do filme ; em que a protagonista mergulha literalmente nas possibilidades infinitas da liberdade. Uma obra densa , intimista , visualmente vigorosa e eroticamente visceral.