Todo mundo conhece mais ou menos a história de Xica da Silva. A impressionante história de uma escrava que viveu ao lado de um homem branco rico e poderoso, que ganhou por amor sua carta de alforria e usufruiu de todas as regalias destinadas às ricas senhoras brancas, em pleno Brasil Colonial.
É preciso fazer uma diferenciação. Separar a Xica fictícia da Chica personagem histórica. Porque realmente existiu uma Chica da Silva, ou melhor: Francisca da Silva de Oliveira (c. 1732-1796), escrava alforriada que viveu uma união estável de mais ou menos quinze anos com o riquíssimo contratador de diamantes da Coroa Portuguesa, João Fernandes de Oliveira (1720-1779), em Arraial do Tijuco, atual Diamantina (MG).
A história, por si só tão singular, já é um convite para a fantasia. Afinal, nela se encontra verdadeiro potencial para uma novela, um conto-de-fadas. É mais ou menos aí que nasceu Xica da Silva, longa de Carlos (Cacá) Diegues, uma cinebiografia que, pouco atento à História, entorna o caldo das tintas míticas.
Xica da Silva foi provavelmente quem popularizou, há quarenta anos, o mito da Xica erótica, sensual, "devoradora de homens". É um mito que até hoje está presente nas adaptações teatrais e televisivas da "imperatriz do Tijuco", como cantou Jorge Ben.
Talvez seja o espírito do tempo, os anos 1970, a sensualidade, os questionamentos morais que sacudiram o patriarcalismo, autoritarismo e conservadorismo dos anos de chumbo. Ou o filme, para trazer um público grande, trouxe a quentura das pornochanchadas tão em voga na época de um jeitão aprendido com os padrões internacionais.
Para o longa, Xica (Zezé Motta) "subiu" na vida devido apenas às suas incríveis habilidades sexuais. O filme tem uma construção frouxa de "ascensão e queda" de Xica, mesmo que a História dê indícios que Chica se manteve no alto até a morte, muito tempo depois do retorno de João Fernandes a Portugal.
Do começo ao fim, Xica da Silva parece celebrar a intensa energia sexual da protagonista, essa sua habilidade em sempre se dar e sair-se bem. Não deixa de ser um retrato da nossa brasilidade (jeitinho?), esse nosso impulso de nunca deixar de tirar uma vantagem em cima de alguém. Neste aspecto, Xica parece ser uma pessoa amoral, preocupada apenas com seu próprio bem-estar.
O tratamento festivo dado à escravatura suaviza as discrepantes diferenças sociais entre as raças do Brasil Colonial, embora haja momentos de grande impacto, como na tortura do negro live Teodoro (Marcus Vinícius - 1946-2003). Mesmo assim, com olhar entre neutro e terno, vemos uma Xica contraditória, que nunca se posiciona contra a escravidão. Aliás, pelo contrário, mais sádica do que nunca, se beneficia dela, agora em destacada posição social.
No mais, Xica da Silva tem uma estrutura linear, convencional. O visual é ponto alto do filme: a exuberância das cores, do figurino, enriquecidas com a arquitetura colonial de Diamantina, cidade que foi palco dos acontecimentos históricos retratados. Também vale destacar a atuação leve, pontuada pelo humor.
Zezé Motta está em seu mais marcante papel, contracenando com o veterano Walmor Chagas (1930-2013), que fez João Fernandes. E é interessante que há personagens que não saem de seus atores. Zezé Motta está financiando um documentário sobre uma equipe de médicos e legistas forenses norte-americanos que vão até Diamantina em busca da ossada de Chica da Silva. A ideia é fazer testes de DNA e, se comprovado, fazer uma reconstituição facial. Afinal, uma das figuras mais icônicas do Brasil Colônia não possui um rosto. O trabalho financiado pela própria Zezé Motta procura reparar essa injustiça histórica.