A abertura de “Lincoln” traz uma poderosa e rápida cena de batalha na etapa final da histórica “Guerra Civil Americana” muito semelhante às magistrais sequências de confronto nos recentes “O Resgate do Soldado Ryan” e “Cavalo de Guerra” (neste último, apesar de ser um filme problemático, não há como negar que há exuberantes momentos – mesmo que muitos digam o contrário). No caso, soldados lutam em um grande campo de terra enlamaçado pela forte chuva e espadas e rifles tiram centenas de vidas a cada segundo. De fato, Steven Spielberg já demonstrou que sabe fazer filmes com temática de guerra como poucos; porém, em “Lincoln”, após os primeiros minutos, o cineasta se dedica a nos contar a história dos últimos meses de vida do mais popular presidente americano de todos os tempos, Abraham Lincoln, deixando, assim, os momentos de batalha de lado e apostando, seguramente, em desenvolver uma minuciosa cinebiografia do presidente acerca de uma forte temática política com base em fatos que mudaram o curso da humanidade
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Como já dito, a superprodução desenvolve uma cinebiografia do 16º presidente norte-americano que liderou o Norte dos Estados Unidos na vitória durante a Guerra Civil (também conhecida como “Guerra da Recessão”). O longa enfatiza os tumultuados meses finais do presidente no cargo. Em um país dividido pela guerra e varrido por fortes ventos de mudança, Lincoln (Daniel Day-Lewis) segue estratégia para encerrar a guerra, unir o país e abolir a escravidão. Com coragem moral e determinação férrea de vencer, suas escolhas nesse momento crítico mudaram o destino das gerações futuras.
Logo que Lincoln aparece em cena (em um belíssimo momento, por sinal) já temos a nítida impressão da tendência narrativa que Spielberg desenvolverá: endeusar a figura do herói americano (repare, por exemplo, no momento em que o quadro se abre aos poucos até que apareça o presidente – quase sempre em primeiríssimo plano ou em perfil, aliás). Além disso, o roteiro ainda faz questão de enfatizar os dramas familiares de Lincoln a fim de humanizá-lo e gerar maior familiaridade com o espectador, para que este, posteriormente, venha a se comover com a lamentável e histórica morte do presidente – e isso não é spoiler, obviamente. Porém, apesar de não ser um problema comprometedor, tal opção soa desnecessária no filme que traz, por si só, um herói que não precisa de nenhum excesso narrativo para carregar o filme do início ao fim – ainda mais quando interpretado por um dos melhores atores da atualidade, Daniel Day-Lewis (mais detalhes em um minuto).
Roteirizado por Tony Kushner, John Logan e Paul Webb (baseado na obra de Doris Kearns Goodwin), “Lincoln” é um dos melhores filmes sobre a política americana já feitos. As cenas de debate entre políticos com opiniões gritantemente divergentes a respeito da 13ª Emenda na constituição dos Estados Unidos da América (que, evidentemente, pôs fim a escravidão e justificou os direitos entre negros e brancos) são excepcionais. E, mesmo que certos termos políticos possam causar estranheza, o trabalho de pesquisa da equipe de Spielberg é admirável desde simples nomes a grandes acontecimentos – muitos deles envolvendo a corrupção de compra de votos de vários políticos. E é justamente nesses momentos – que são, sem dúvidas, os melhores e mais vibrantes do longa – que Tommy Lee Jones brilha em uma atuação excelente como coadjuvante (não precisa nem dizer que seria merecido caso ele viesse a ganhar o Oscar – apesar de que todos os indicados sejam fortíssimos e igualmente merecedores). O ator, facilmente, garante o êxito de todas as cenas onde Lincoln não aparece; porém, quando Daniel Day-Lewis está em cena não tem para ninguém. Chega a impressionar a facilidade com a qual o brilhante ator interpreta o presidente como se já tivesse atuado no papel toda a sua vida; Daniel, de fato, domina as características de Abraham Lincoln magistralmente, começando pelas pequenas expressões faciais, passando pelo jeito de andar e impressionando a todos com seu perfeito trabalho vocal (e, mesmo sendo admirador das atuações dos demais concorrentes ao prêmio de melhor ator no Oscar, seria um pecado não contemplar o divino trabalho do sempre perfeccionista Daniel Day-Lewis). Além deles, o roteiro também destaca as atuações de Sally Field (fazendo a primeira dama) e Joseph Gordon-Levitt (que, no caso, faz um dos filhos do presidente).
Contando com um desing de produção definitivamente impecável, “Lincoln” se torna um filme genuinamente exuberante. A direção de arte (de Curt Beech, David Crank e Leslie McDonald) é extraordinária, os figurinos são riquíssimos em detalhes, a maquiagem é formidável e a trilha musical – além de tocante – é quase sempre adicionada precisamente pela edição (mesmo que a composição de John Williams possa, em alguns momentos, soar insistente). Isso sem mencionar a primorosa fotografia de Janusz Kaminski, quase sempre azulada e nebulosa, transmitindo toda a tensão e tristeza daquela época (mas, mesmo em meio a tamanho temor, Spielberg faz questão de contrastar os escuros figurinos e os tristes cenários com a luz solar que constantemente resplandece através das janelas da Casa Branca remetendo diretamente à esperança que, em tempos sombrios, ainda persiste – sempre, claro, focalizando a figura do presidente de modo questionável).
Mas se, por um lado, Steven Spielberg, em trabalhos anteriores, esbanjava – em algumas vezes até mesmo exagerava – na dose de ação em marcantes cenas de batalhas; em “Lincoln”, por outro, o cineasta desenvolve uma narrativa lenta, com longos diálogos e monólogos e intermináveis cenas – o que, certamente, prejudica diretamente o ritmo do filme e exige maior paciência do espectador. E não é exagero algum dizer que em alguns momentos a narrativa se torne demasiada e excessiva (com inúmeros elementos desnecessários), fazendo com que tenhamos certeza de que Spielberg cometeu alguns erros ao concluir tal versão final do longa que, certamente, poderia ser editada (deméritos para a montagem que, embora seja inegavelmente cuidadosa, possui explícitos problemas de envolvência e fluidez).
Então, mesmo que vagarosamente, o filme chega a seu ótimo clímax que – aí sim – Spielberg conduz muito bem (repare, por exemplo, no ágil corte no momento chave do terceiro ato quando o diretor opta, ao invés de manter o foco na câmera dos deputados, em focalizar em outro lugar a face aflita de Lincoln, que, assim como a maioria, recebe a tão esperada notícia de que a 13ª Emenda havia sido aprovada por meio de fervorosas badalas no sino da Casa Branca, que anunciam a “paz” que estava por vim). E devo dizer que a abordagem da morte de Lincoln da forma que fora me pareceu descartável (um simples letreiro poderia enunciar tal fato, já que, em muitos momentos da narrativa, o diretor até mesmo exagera em sua didática), pois Spielberg, propositalmente ou não, acrescenta um melodrama prejudicial ao desfecho do filme.
Enfim, não há dúvidas de que “Lincoln” é um filme grandioso – justificando suas 12 indicações ao Oscar. Magistralmente produzido, com um roteiro ousado e seguramente colocado em prática por Steven Spielberg – no caso, adotando uma linguagem diferente de seu estilo habitual, que, sem dúvidas, dividiu e ainda dividirá opiniões. No mais, um longa que, apesar de seus problemas, nos conta convincentemente sua história baseada em fatos históricos que jamais serão esquecidos, e, sobretudo, presta uma homenagem mais do que merecida a um verdadeiro herói da humanidade – e não somente americano. Portanto, resta dizer que, sim, o filme cumpre seu papel como cinebiografia, que será lembrado mais pela poderosíssima atuação de Daniel Day-Lewis do que por ser uma obra memorável – até porque não é.
Vale a Pena!