Luta pela liberdade
por Lucas SalgadoLincoln começa num campo enlameado de batalha em que o norte e o sul dos Estados Unidos se enfrentavam em plena Guerra da Secessão. A sequência é dura e crua, mostrando a brutalidade do conflito, mas dura pouco. A sensação que fica é que se a cena fosse um pouco maior, Steven Spielberg poderia criar algo tão impactante quanto aquela magistral abertura de O Resgate do Soldado Ryan. Mas o diretor preferiu mostrar que o foco do filme estaria no diálogo e no lado político, cortando rapidamente para uma cena em que Lincoln conversa com dois soldados negros. Este momento, por sinal, é belíssimo, culminando com a recitação de um dos mais marcantes discursos do 16º presidente americano, no caso, aquele que ficou conhecido como o Discurso de Gettysburg, em que fala em "o governo do povo, pelo povo e para o povo", algo que marca até hoje a política nos EUA.
A partir daí, o longa foca sua atenção na luta de Abraham Lincoln pelo fim da escravidão, mostrando todo um jogo político para tentar passar no congresso o projeto de emenda à constituição que defende que todos os homens são iguais perante a lei. Spielberg, que muitas vezes é apontado como um diretor sem muito coragem, se mostrou muito ousado ao pegar aquele que talvez seja o nome mais importante da história da política norte-americana e colocá-lo oferecendo cargos em prol de votos pela emenda. Vai ser difícil para os brasileiros não lembrarem do mensalão ou da emenda da reeleição.
Mesmo mostrando Lincoln e seu partido adotando a máxima maquiaveliana de que "os fins justificam os meios", Spielberg evita fazer julgamentos diante de tal prática. Tudo é muito sóbrio no filme. A história é desenvolvida, as informações são passadas, mas o espectador pouco se envolve. É estranho ver um diretor que criou obras tão emocionantes como A Lista de Schindler e A Cor Púrpura pecar pela falta de sentimento. Com exceção de alguns poucos momentos, como na conclusão da votação do congresso, são raras as cenas que despertam emoção. Na maior parte do filme, o público vai adotar uma atitude passiva com relação ao longa, e este é o principal defeito da produção.
Lançado no mesmo ano que o fraquíssimo Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros, que obviamente não possui as mesmas pretensões artísticas, Lincoln tem sua maior força nas atuações. Daniel Day-Lewis tem mais uma atuação assombrosa na carreira, nos lembrando porque já possui duas estatuetas do Oscar (Sangue Negro e Meu Pé Esquerdo). O ator incorpora o ex-presidente de forma impressionante, com um trabalho de voz que faz do personagem um sujeito delicado, mas sempre marcante, falando baixo, mas sendo sempre ouvido. Com relação ao protagonista, é impossível não destacar o trabalho dos profissionais de maquiagem, que fizeram Day-Lewis parecer saído de uma nota de cinco dólares.
Sally Field e Tommy Lee Jones são outros destaques do elenco, que conta ainda com as ótimas presenças de David Strathairn, Hal Holbrook e Bruce McGill. Field interpreta Mary Todd Lincoln e chama a atenção em todas as sequências que aparece. Já Lee Jones surge como Thaddeus Stevens, congressista liberal que causa polêmica entre os representantes do povo. O ator, que muitas vezes gasta seu talento em produções que só exigem dele a cara de durão mal humorado, brilha no filme, protagonizando pelo menos uma cena memorável. Mas nem só de veteranos vive o elenco de Lincoln. Joseph Gordon-Levitt, Lee Pace e Joseph Cross também aparecem com destaque.
O longa conta com uma belíssima trilha sonora de John Williams, que tem como principal mérito o fato de não ser repetitiva ou insistente. A trilha surge de forma forte, mas não se preocupa em marcar presença durante todo o tempo. A fotografia de Janusz Kaminski também merece aplausos ao adotar uma tonalidade azulada, numa referência clara às cores da União na Guerra da Secessão. É curiosa ainda a opção por tomadas em primeiríssimo plano, com muito destaque aos rostos dos atores, o que reforça a percepção das grandes atuações.
Outro ponto positivo do filme é a direção de arte, que aqui é comandada por seis mãos (Curt Beech, David Crank e Leslie McDonald). O trio colaborou para dar autenticidade ao drama. Tudo é suntuoso e de muito bom gosto. O mesmo pode ser dito do figurino criado por Joanna Johnston.
Escrito por Tony Kushner, Lincoln é um filme grandioso, mas lhe falta algo para ser considerado um grande filme. Ainda assim, funciona como instrumento de reflexão política. Ao mesmo tempo que muitas práticas continuam as mesmas, é inegável que o mundo andou para frente com o passar das décadas, pelo menos no que diz respeito às liberdades individuais e à igualdade de direitos, afinal é bem simbólico vermos, em contra partida ao mostrado no filme, um presidente afrodescendente ocupando a Casa Branca (Barack Obama).