Ambientação noir continua a permear as noites na cidade do pecado
Film noir (pronuncia-se “film noar”) é uma expressão quem vem do francês, cuja tradução literal seria “filme preto”. O termo (usado pela primeira vez em 1946 por um crítico da França, obviamente) remete a um estilo cinematográfico surgido involuntariamente, e sem se dar conta de sua importância, na Hollywood da década de 1940, influenciado pelo expressionismo alemão e marcado, portanto, pelo uso contrastante de luzes e sombras – muito mais sombras do que luzes – na construção de ambientações predominantemente noturnas e fortemente climáticas que, por sua vez, enfatizavam o pessimismo, a ironia e a paranoia das histórias de crimes que eram contadas, muitas vezes fora de ordem cronológica, e que envolviam, entre outros estereótipos, anti-heróis à margem da lei (ou completamente fora dela), gângsteres intocáveis e... damas fatais. A ausência de cores – que apesar de terem surgido no cinema em 1936 só se consolidariam alguns anos mais trade – salientava a dramaticidade alcançada pelo uso criativo dos tons de cinza (muito mais de cinquenta). E as tramas, muitas delas adaptadas de literatura policial barata, os famosos pulp fiction, ofereciam uma generosa imersão ao submundo dos centros urbanos. Uma característica curiosa utilizada em vários expoentes do gênero era a narração, que poderia ser ouvida em off em terceira pessoa por um locutor imparcial, ou pela voz e ponto de vista do próprio protagonista, fosse ele mocinho ou vilão. Outro diferencial era justamente a indefinição no conceito de bom e mau dos personagens, cujas motivações poderiam provocar ações dignas de serem “freudianamente” analisadas. Podemos citar O Falcão Maltês (1941) e Pacto de Sangue (1944) como exemplos clássicos deste gênero que, a despeito de seu aspecto despretensioso, acabou por influenciar, com o passar das décadas, não apenas o cinema, mas a cultura POP em geral, o que nos remete inerentemente à obra de Frank Miller.
Sin City: A Dama Fatal retoma à risca a fórmula do anterior, Sin City – A Cidade do Pecado, de 2005, igualmente dirigido e roteirizado por Robert Rodriguez e Miller, a partir dos quadrinhos noir deste último. No entanto, a simples repetição de uma fórmula de sucesso não garante o êxito de uma nova obra. Aqui estão novamente a estética das HQs transposta para a tela em 24 quadros por segundo, os cenários gerados por computação gráfica após as filmagens com atores em fundo azul (ou verde), a violência exagerada e propositalmente inverossímil, o uso inteligente de alguns detalhes tingidos com cores “quentes” em meio ao P&B, salientando paixão, dualidade, raiva, dor ou simplesmente... pecado. Mal qual o ingrediente fundamental e imprescindível para a realização de um bom filme? Um bom roteiro. E este é o item mais derrapante desta nova coletânea de histórias que se passam nas noites eternas da cidade da iniquidade.
Novamente, três narrativas se entrecruzam, das quais a melhor, sem “sombra” de dúvida (com o perdão do trocadilho), é a que envolve a “dama fatal” do título, Ava, mergulhando o espectador em toda a exuberância de sua beleza irresistivelmente provocante e perigosamente mortal (Eva Green, não hesitando em expor sem nenhum pudor sua esplendorosa nudez, já vista este ano em 300 – A Ascenção do Império, outra cria de Miller). Este episódio, que dá nome ao longa, é o único que já foi publicado em formato de HQ. Os outros dois trechos inéditos, que poderiam ser nominados como “as desventuras de um jovem prodígio do pôquer”, e “a vingança de Nancy – a stripper”, apesar de não serem de todo ruins, empalidecem se comparados com a potencialidade narrativa das histórias vistas no longa original.
Seguramente, Jessica Alba, como a “bonitinha, mas ordinária” Nancy, e Mickey Rourke, como o sempre truculento Marv, contribuem com seus papéis não apenas para amarrar as histórias deste longa, mas também interligá-las às do anterior. O roteiro inclusive mescla, de forma interessante, fatos ocorridos antes e depois dos mostrados no primeiro filme, despertando a atenção do espectador mais atento. Entretanto, a troca de atores em papéis outrora empolgantes diminui drasticamente o impacto de suas cenas. O falecimento do carismático gigante Michael Clarke Duncan em 2012 tornou necessária a contratação de outro ator para viver seu papel, e coube a Dennis Haysbert a ingrata tarefa, ao passo que a jovem Brittany Murphy repetiria sua personagem se não tivesse nos deixado precocemente em 2009. O aventureiro Dwight e a samurai nipônica Miho também ganharam novos intérpretes, provavelmente em decorrência de agenda ou desacordos contratuais. Igualmente anticlimático é ver um dos personagens principais do longa de 2005, ainda que vivido pelo mesmo ator, aparecendo aqui apenas como um “fantasminha camarada”. Se um bom elenco não salva um roteiro ruim, o que dizer de um elenco desfalcado e desorientado?
Rodriguez e Miller (que fazem uma rápida ponta) bem que tentaram, mas, além dos fatores acima citados, o hiato de nove anos que separa as duas produções só diminui o interesse gerado pelo novo longa, que tampouco apresenta inovações tecnológicas relevantes o suficiente para causar um impacto sequer semelhante àquele proporcionado em 2005. A adesão do 3D só confirma a utilização apenas decorativa que tem sido feita ultimamente deste recurso que tanto potencial possui, ainda à espera de ser devidamente desenvolvido. Resta, portanto, apenas a curiosidade de acompanhar neste longa três novos e razoáveis episódios noir, ambientados em uma cidade que já foi bem mais interessante.