Em primeiro lugar, é preciso compreender o que Os Bons Companheiros trouxe de novo ao tema. Ao contrário de filmes anteriores, incluindo a própria trilogia de Coppola, a obra-prima scorsesiana desloca o olhar sobre esses personagens tão fora da lei para o âmbito mais doméstico e pessoal possível. O cineasta conhecia o ambiente daqueles homens, já que passou toda a juventude em um bairro nova-iorquino repleto deles. Por isso, não há apenas momentos de violência explícita e de gatunices no longa-metragem. Scorsese tira seus mafiosos das ruas e dos bordéis e os coloca também em suas casas e em suas festas de família. Eles passam a se parecer mais com homens normais do que era de se esperar e isso chega mesmo a criar afeto por eles. Mas é bom pontuar que não há nenhum esforço de romantização por parte do diretor, que filma seus brutais assassinatos com uma perícia inigualável. A grande novidade é que Os Bons Companheiros não dá respostas unidirecionais sobre seus gângsters.
Martin Scorsese faz o que ninguém havia feito – ele traz o alto crime para o mundo dos homens comuns. Além de maravilhosamente bem filmado, seu longa-metragem tem em sua trilha sonora uma de suas fortalezas. Ela dá o tom exato do clima de subversão e de risco constante, em um universo onde o banditismo é quem dá as cartas. Tonny Bennet, Aretha Franklin, Rolling Stones, The Who, Cream e outros artistas canônicos da música norte-americana constroem uma das trilhas sonoras mais memoráveis da história do cinema. O clássico riff de Sunshine of Your Love, da banda de Eric Clapton, se tornou parte indissociável de Os Bons Companheiros, assim como a antológica queima de arquivo pontuada com certa dose de ironia por Layla, da banda Derek & The Dominos. Todas as canções parecem feitas sob medida para o filme e se entrosam muito bem com o submundo criminoso de Jimmy Conway (Robert De Niro), Tommy DeVito (Joe Pesci) e Henry Hill (Ray Liotta). Um amálgama entre imagem e som raro de se ver.
As interpretações do trio são irrepreensíveis, com direito a um célebre improviso de Joe Pesci durante a hilária cena em que seu personagem pergunta a Henry Hill o que era engraçado em sua história. Scorsese, como um apaixonado pelo cinema, domina a sua linguagem por completo e faz de Os Bons Companheiros um dos filmes mais bem filmados de sua longa e rica carreira. Sua direção bebe claramente da fonte do cinema estadunidense das décadas de 60 e 70. O diretor nova-iorquino utiliza o zoom como poucas vezes se viu no cinema dos anos 90, década à qual o filme pertence. Ele usa o movimento da objetiva para chamar atenção dos detalhes e das peculiaridades de seus protagonistas. Scorsese confia na força de seus personagens e quer que o público também confie. É interessante notar como ele acelera o zoom in em uma cena em que Henry Hill cheira cocaína, simulando o efeito da droga entrando no corpo (muito antes de Darren Aronofsky criar sua montagem hip hop, em Réquiem Para Um Sonho, para a mesma finalidade).
A onisciência do narrador é ressaltada pelos frames congelados de Scorsese, que aumentam a importância do que se conta e dão também um caráter despojado ao relato (além de uma pitada de humor negro). É assombrosa a inteligência dos planos do cineasta americano. Quando Karen Hill (Lorraine Bracco) aponta uma arma para o marido, Scorsese a mantém em contra-plongée, enquanto Henry fica todo o tempo em plongée – invertida a ordem de dominação entre eles. Os insert-shots no gatilho e no cano do revólver dizem claramente que o único atributo de valor nesse mundo dos gângsters é mesmo o poder. A única coisa a ser disputada nesse submundo brutal, onde a moral perdeu o seu lugar. Scorsese demonstrará essa troca entre moral e poder no plano-sequência que registra a chegada de Henry e Karen a uma festa, ignorando todas as filas e alcançando o interior do local como se nada pudesse impedi-los de chegar aonde queriam.
Em sua conclusão, Os Bons Companheiros quebra a quarta parede para envolver diretamente o espectador em suas indagações finais. O filme conquista o público exatamente por mexer em algo escondido profundamente nele – o desejo de transgressão. Jimmy Conway e sua camarilha trazem à tona a sede de insubordinação do homem comum, submetido a tantas leis, regras e obrigações sociais ao longo de toda a vida e sem receber, muitas vezes, a devida contrapartida. Não se trata, de forma alguma, de uma justificativa rasteira ao crime, que é praticado da forma mais ignóbil durante todo o longa-metragem. Mas uma coisa é certa: quando Tommy DeVito atira enfurecido contra a câmera, Martin Scorsese sabe muito bem o que deseja despertar em seu público.