Don Juan em crise
Flores Partidas é um belo e simpático road movie no qual o supérfluo inexiste
Personagem nascido na Espanha há cerca de quatrocentos anos e tido como símbolo da sedução e da libertinagem, Don Juan vem atravessando os séculos como fonte inspiradora de obras literárias, pinturas, músicas, filmes. Em Flores Partidas, de Jim Jarmusch, o mito está mais uma vez presente. Mas, agora, na forma de alguém em profunda crise, corroído pelo tédio e que, de repente, acha-se na obrigação de mergulhar no próprio passado para recuperar algo importante. Ou para encontrar a si mesmo.
Don Johnston (a suave referência ao folclórico personagem espanhol já começa no nome do protagonista) é interpretado por Bill Murray. Apático ao extremo, ele acaba abandonado por sua mais nova conquista. A angústia do rompimento sai de cena quando Johnston recebe a notícia de que é pai de um rapaz de 19 anos. O comunicado chega através de uma carta anônima enviada em um envelope rosa por uma de suas antigas namoradas. Seu vizinho e melhor amigo, o etíope Winston (Jeffrey Wright), logo se excita para incentivar Johnston a desvendar o mistério. Detalhe: Winston simplesmente tem obsessão por histórias policiais. Estamos, então, diante daquilo que os manuais básicos de roteiro definem como primeiro ponto de virada, passagem da introdução para o desenvolvimento da história.
A partir desse momento passamos a participar do processo do protagonista de sair em busca do passado que renasce. Ele, no entanto, faz o possível para demonstrar desinteresse em aprofundar-se na questão. Pelo menos de início. Afinal, tédio e apatia são, definitivamente, a marca de Johnston. A repetição dessas palavras neste texto deixa de ser defeito e passa a ser reforço daquilo que o próprio filme frisa. Murray, considerado um mestre do minimalismo, está perfeito para atender àquilo que o personagem exige.
O arrogante desprezo com o qual Johnston responde às motivações de Winston para buscar mais detalhes sobre a carta revela-se falso e é elegantemente desfeito pelo roteiro. É agradável acompanhar suas negações aos pedidos de Winston e, logo depois, vê-lo fazendo exatamente aquilo que negou. Dessa forma, o personagem central vai aos poucos mergulhando (e a nós todos, por extensão) na ideia de conhecer seu filho e descobrir qual das ex-conquistas é a autora da carta. E esse mergulho é cada vez mais profundo.
Na trajetória pelos Estados Unidos à procura das antigas namoradas, Johnston encontra exemplos de famílias atípicas. Pelo menos para aquele modelo tradicionalmente construído onde há pai, mãe e filhos. Vemos, então, que não é só esse “Don Juan” personificado em Bill Murray que está em crise, mas a própria família norteamericana de classe média. Há, por exemplo, a viúva com a filha Lolita (cujo nome está totalmente relacionado à personagem, uma adolescente que chega a desfilar despreocupadamente nua na frente de Johnston enquanto fala ao telefone); e o casal que vive bem financeiramente, mas não tem filhos. A única família estruturada é a de Winston, justamente um estrangeiro e paradoxo completo de Johnston. Atenção especial para o segundo encontro na viagem do protagonista. O constrangimento chega a vazar da tela. O que parece exagero de escriba poderá ser facilmente comprovado pelo espectador.
Acompanhamos o personagem de Bill Murray com satisfação nesse road movie (ou falso road movie, como defendem alguns, já que não há uma transformação significativa do protagonista no decorrer do percurso). A câmera subjetiva nas cenas de viagem de carro, aquela em que vemos exatamente o que o personagem vê, nos ajuda nesse sentido. Outro forte aliado nesse passeio é o CD gravado por Winston especialmente para a viagem peculiar do amigo.
Flores Partidas revela-se um belo e simpático filme no qual nada é gratuito, nada é por acaso e cada cena tem sua razão de estar onde está. Apesar de isso parecer algo básico, convenhamos, nem sempre acontece. Em Flores Partidas o supérfluo não existe: o encadeamento das imagens é cuidadosamente construído para nos conduzir com o protagonista. E ele nos leva para um final que, certamente, ficará em nossa memória. Seja porque odiamos, seja porque achamos ser o recurso perfeito no momento ideal.
Tiago Luiz Bubniak